Uma Lacuna Muito Necessária?
“Haverá alguma coisa que nos toque mais a alma do que espreitar uma galáxia distante por um telescópio de 100 polegadas, segurar na mão um fóssil com 100 milhões de anos ou um utensílio de pedra com 500.000 anos, contemplar de pé o imenso abismo de espaço e tempo que é o grande Canyon, ou escutar um cientista que olhou cara a cara a criação do universo e não pestanejou? É isso a profunda e sagrada ciência.”
(Michael Shermer)
(Michael Shermer)
Será que a religião preenche uma lacuna muito necessária?
Diz-se frequentemente existir no cérebro uma lacuna que tem a forma de Deus e que é preciso preencher: temos uma necessidade psicológica de Deus – amigo imaginário, pai, big brother, confessor, confidente – e a necessidade tem de ser satisfeita quer Deus exista de facto, quer não.
Mas não será que Deus vem atravancar um espaço que melhor seria que preenchêssemos com outra coisa? Talvez a ciência? A arte? A amizade humana? O humanismo? O amor por esta vida, vivida no mundo concreto, sem dar crédito a eventuais vidas para além da morte? Um amor pela natureza – aquilo a que o grande entomólogo E.O. Wilson chamou Biofilia?
Já se apontaram à religião quatro grandes funções na vida humana: explicação, exortação, consolo e inspiração.
Historicamente, a religião aspirou a explicar a nossa existência e a natureza do universo em que nos inserimos. Nesta função ela foi, entretanto, completamente ultrapassada pela ciência.
Por exortação pretendo dizer a orientação moral sobre o modo como nos devemos comportar.
Quanto ao consolo e inspiração abordaremos de seguida mas, à laia de preâmbulo, começaremos com o fenómeno do «amigo imaginário» da nossa infância que julgo ter semelhanças com a crença religiosa.
O Urso de Peluche chamado Binker
“Na vida tenho um segredo que guardo com muito carinho, Binker lhe chamo e com ele nunca me sinto sozinho.
Quando brinco no meu quarto ou me sento no patamar, esteja eu onde estiver, sempre o Binker há-de estar.
O papá é muito esperto, de uma esperteza sem fim,
E a mamã é a melhor mãe do mundo inteiro para mim,
E a ama é a Nana – gosto de chamar-lhe assim –
Mas eles não vêm o Binker.
O Binker está sempre a falar, porque eu ando a ensiná-lo. Põe-se às vezes a guinchar, mas com isso não me ralo. Gosta às vezes de rugir, tão alto que assarapanta e eu tenho de o substituir porque lhe dói a garganta.
O papá é muito esperto, de uma esperteza sem fim,
E a mamã sabe tudo, tudo timtim por tintim.
E a ama é a Nana – gosto de chamar-lhe assim –
Mas eles não sabem do Binker.
Se corremos pelo parque, o Binker é bravo – um leão
E bravo é como o tigre, quando nos cerca a escuridão;
Bravo é como o elefante, pois não chora nunca, não…
Excepto se, ao lavar-se, lhe entra para os olhos o sabão.
O papá é um papá, como são todos, enfim,
E a mamã esforça-se para ser a melhor mãe para mim;
E a ama é a Nana – gosto de chamar-lhe assim…
Mas eles não são como o Binker.
O Binker não é guloso, mas há coisas que adora comer,
Por isso, se me dão doces, eu lá tenho de dizer:
O Binker quer um chocolate. Será que me podem dar dois? E como ele tem dentes fracos eu papo tudo depois.
Gosto muito do papá, mas para brincar não tem tempo, e gosto também da mamã, mas às vezes está ausente,
E fico zangado com a Nana, por me querer bem penteado…
Mas o Binker é sempre o Binker, e está sempre ao meu lado.
(A. A. Milne, escritor ingles)
Será o fenómeno do amigo imaginário uma ilusão de tipo superior, numa categoria diferente do comum faz-de-conta da infância?
Suspeito que o fenómeno do Binker da infância pode ser um bom modelo para compreender a crença teísta dos adultos. Não sei se os psicólogos já estudaram a questão deste ponto de vista mas seria digna de investigação.
Companheiro e confidente, um Binker para a vida: esse é, seguramente, um papel que Deus desempenha – uma lacuna que perduraria se Deus desaparecesse.
Outra criança, uma menina, tinha um “homenzinho púrpura” que lhe parecia uma presença real e visível e que se materializava no ar com uma cintilação e um suave tinido.
Visitava-a com regularidade, especialmente quando se sentia sozinha, mas com menor frequência à medida que ela foi crescendo.
Um certo dia, mesmo antes de ir para a escola, o “homenzinho púrpura” apareceu-lhe, anunciado pelo habitual tinir das campainhas, para lhe dizer que não voltaria a visitá-la.
Isto entristeceu a menina, mas o homenzinho púrpura disse-lhe que ela estava a crescer e que no futuro não iria precisar mais dele. Agora tinha de deixá-la para poder ir cuidar de outras crianças. Prometeu-lhe, no entanto, que voltaria se ela precisasse dele a sério.
Voltou, de facto, muitos anos mais tarde, num sonho, numa altura em que ela estava a atravessar uma crise pessoal e a tentar decidir o que fazer à vida.
A porta do quarto abriu-se e apareceu uma carrada de livros, empurrada, quarto dentro… pelo “homenzinho de púrpura”.
Ela interpretou isto como sendo um conselho no sentido de ir para a universidade – conselho que ela seguiu e mais tarde considerou bom.
É uma história enternecedora que consegue, melhor do que qualquer outro exemplo, acercar-nos da compreensão do papel consolador e aconselhador que os deuses imaginários têm na vida das pessoas.
Um ser pode existir apenas na imaginação e, ainda assim, parecer completamente real à criança, dando-lhe verdadeiro consolo e bons conselhos.
Mas melhor ainda, os amigos – e os deuses imaginários - têm tempo e paciência para dedicar toda a atenção a quem sofre. E são muito mais baratos do que os psiquiatras ou os conselheiros profissionais.
Terão os deuses, nesse seu papel de consoladores e conselheiros evoluído a partir de Binkers por meio de uma espécie de “pedomorfose” psicológica.
A “pedomorfose” é a manutenção na idade adulta, de características da infância.
Terão as religiões, originariamente evoluído, ao longo de gerações, através de um adiamento gradual do momento da vida em que as crianças põem de parte os “Binkers” – do mesmo modo que fomos abrandando, ao longo da evolução, o achatamento da testa e a protrusão (projecção para a frente) dos maxilares?
Para completar o quadro, consideremos a possibilidade inversa. Em vez de serem os deuses a evoluir a partir de Brinkers ancestrais, será possível os Brinkers terem evoluído de deuses antigos?
Esta ideia parece menos provável.
O psicólogo norte-americano Julien Jaynes observou que muitas pessoas têm a percepção que os seus próprios processos de pensamento são como uma espécie de diálogo entre o “eu” e outro protagonista interno, situado dentro da cabeça.
Hoje em dia compreendemos que ambas as vozes são nossas e senão o compreendermos somos tratados como doentes mentais.
Foi o que aconteceu, durante um breve período, com Evelyn Waugh, escritor inglês de personalidade difícil.
Sem papas na língua, como era seu timbre, comentou com um amigo: «Não te vejo há muito tempo, mas também tenho visto tão pouca gente porque – não sei se sabias – enlouqueci.»
Depois de recuperar, Evelyn escreveu um romance, “As Desventuras do Senhor Pinfold”, em que descreve o seu período alucinatório e as vozes que então ouvia.
O que Jaynes sugere é que antes do ano 1.000 a.c. a generalidade das pessoas desconhecia que a segunda voz – a que o Sr Pinfold ouvia – vinha de dentro de si.
Julgavam-na a voz de um deus.
Jaynes vai mesmo ao ponto de localizar a “voz dos deuses no hemisfério do cérebro oposto ao que controla a linguagem.
Terá sido o momento em que as pessoas se deram conta de que as vozes exteriores que lhes parecia ouvir vinham, efectivamente, de dentro de si mesmas.
Jaynes considera esta transição histórica como o alvor da consciência humana.
Os deuses seriam, então, vozes alucinadas que falavam dentro das cabeças das pessoas.
Assim, e numa espécie de inversão da hipótese da pedomorfose, os deuses alucinados começaram, primeiro, por desaparecer das mentes adultas e foram, depois, puxados para trás, para fases cada vez mais recuadas da infância, até às suas actuais sobrevivências sob a forma de fenómenos como o Binker ou o “homenzinho púrpura”. O problema desta versão é que não explica a persistência dos deuses, hoje, na idade adulta.
Talvez seja melhor não tratar os deuses como antepassados dos Brinkers ou vice-versa, mas antes encarar ambos como sub-produtos da mesma predisposição psicológica que têm em comum o poder de confortar.
Richard Dawkins
Nota – Michael Sermer, psicólogo americano que há vários anos se dedica a uma cruzada em defesa do pensamento científico contra as superestições.
Diz-se frequentemente existir no cérebro uma lacuna que tem a forma de Deus e que é preciso preencher: temos uma necessidade psicológica de Deus – amigo imaginário, pai, big brother, confessor, confidente – e a necessidade tem de ser satisfeita quer Deus exista de facto, quer não.
Mas não será que Deus vem atravancar um espaço que melhor seria que preenchêssemos com outra coisa? Talvez a ciência? A arte? A amizade humana? O humanismo? O amor por esta vida, vivida no mundo concreto, sem dar crédito a eventuais vidas para além da morte? Um amor pela natureza – aquilo a que o grande entomólogo E.O. Wilson chamou Biofilia?
Já se apontaram à religião quatro grandes funções na vida humana: explicação, exortação, consolo e inspiração.
Historicamente, a religião aspirou a explicar a nossa existência e a natureza do universo em que nos inserimos. Nesta função ela foi, entretanto, completamente ultrapassada pela ciência.
Por exortação pretendo dizer a orientação moral sobre o modo como nos devemos comportar.
Quanto ao consolo e inspiração abordaremos de seguida mas, à laia de preâmbulo, começaremos com o fenómeno do «amigo imaginário» da nossa infância que julgo ter semelhanças com a crença religiosa.
O Urso de Peluche chamado Binker
“Na vida tenho um segredo que guardo com muito carinho, Binker lhe chamo e com ele nunca me sinto sozinho.
Quando brinco no meu quarto ou me sento no patamar, esteja eu onde estiver, sempre o Binker há-de estar.
O papá é muito esperto, de uma esperteza sem fim,
E a mamã é a melhor mãe do mundo inteiro para mim,
E a ama é a Nana – gosto de chamar-lhe assim –
Mas eles não vêm o Binker.
O Binker está sempre a falar, porque eu ando a ensiná-lo. Põe-se às vezes a guinchar, mas com isso não me ralo. Gosta às vezes de rugir, tão alto que assarapanta e eu tenho de o substituir porque lhe dói a garganta.
O papá é muito esperto, de uma esperteza sem fim,
E a mamã sabe tudo, tudo timtim por tintim.
E a ama é a Nana – gosto de chamar-lhe assim –
Mas eles não sabem do Binker.
Se corremos pelo parque, o Binker é bravo – um leão
E bravo é como o tigre, quando nos cerca a escuridão;
Bravo é como o elefante, pois não chora nunca, não…
Excepto se, ao lavar-se, lhe entra para os olhos o sabão.
O papá é um papá, como são todos, enfim,
E a mamã esforça-se para ser a melhor mãe para mim;
E a ama é a Nana – gosto de chamar-lhe assim…
Mas eles não são como o Binker.
O Binker não é guloso, mas há coisas que adora comer,
Por isso, se me dão doces, eu lá tenho de dizer:
O Binker quer um chocolate. Será que me podem dar dois? E como ele tem dentes fracos eu papo tudo depois.
Gosto muito do papá, mas para brincar não tem tempo, e gosto também da mamã, mas às vezes está ausente,
E fico zangado com a Nana, por me querer bem penteado…
Mas o Binker é sempre o Binker, e está sempre ao meu lado.
(A. A. Milne, escritor ingles)
Será o fenómeno do amigo imaginário uma ilusão de tipo superior, numa categoria diferente do comum faz-de-conta da infância?
Suspeito que o fenómeno do Binker da infância pode ser um bom modelo para compreender a crença teísta dos adultos. Não sei se os psicólogos já estudaram a questão deste ponto de vista mas seria digna de investigação.
Companheiro e confidente, um Binker para a vida: esse é, seguramente, um papel que Deus desempenha – uma lacuna que perduraria se Deus desaparecesse.
Outra criança, uma menina, tinha um “homenzinho púrpura” que lhe parecia uma presença real e visível e que se materializava no ar com uma cintilação e um suave tinido.
Visitava-a com regularidade, especialmente quando se sentia sozinha, mas com menor frequência à medida que ela foi crescendo.
Um certo dia, mesmo antes de ir para a escola, o “homenzinho púrpura” apareceu-lhe, anunciado pelo habitual tinir das campainhas, para lhe dizer que não voltaria a visitá-la.
Isto entristeceu a menina, mas o homenzinho púrpura disse-lhe que ela estava a crescer e que no futuro não iria precisar mais dele. Agora tinha de deixá-la para poder ir cuidar de outras crianças. Prometeu-lhe, no entanto, que voltaria se ela precisasse dele a sério.
Voltou, de facto, muitos anos mais tarde, num sonho, numa altura em que ela estava a atravessar uma crise pessoal e a tentar decidir o que fazer à vida.
A porta do quarto abriu-se e apareceu uma carrada de livros, empurrada, quarto dentro… pelo “homenzinho de púrpura”.
Ela interpretou isto como sendo um conselho no sentido de ir para a universidade – conselho que ela seguiu e mais tarde considerou bom.
É uma história enternecedora que consegue, melhor do que qualquer outro exemplo, acercar-nos da compreensão do papel consolador e aconselhador que os deuses imaginários têm na vida das pessoas.
Um ser pode existir apenas na imaginação e, ainda assim, parecer completamente real à criança, dando-lhe verdadeiro consolo e bons conselhos.
Mas melhor ainda, os amigos – e os deuses imaginários - têm tempo e paciência para dedicar toda a atenção a quem sofre. E são muito mais baratos do que os psiquiatras ou os conselheiros profissionais.
Terão os deuses, nesse seu papel de consoladores e conselheiros evoluído a partir de Binkers por meio de uma espécie de “pedomorfose” psicológica.
A “pedomorfose” é a manutenção na idade adulta, de características da infância.
Terão as religiões, originariamente evoluído, ao longo de gerações, através de um adiamento gradual do momento da vida em que as crianças põem de parte os “Binkers” – do mesmo modo que fomos abrandando, ao longo da evolução, o achatamento da testa e a protrusão (projecção para a frente) dos maxilares?
Para completar o quadro, consideremos a possibilidade inversa. Em vez de serem os deuses a evoluir a partir de Brinkers ancestrais, será possível os Brinkers terem evoluído de deuses antigos?
Esta ideia parece menos provável.
O psicólogo norte-americano Julien Jaynes observou que muitas pessoas têm a percepção que os seus próprios processos de pensamento são como uma espécie de diálogo entre o “eu” e outro protagonista interno, situado dentro da cabeça.
Hoje em dia compreendemos que ambas as vozes são nossas e senão o compreendermos somos tratados como doentes mentais.
Foi o que aconteceu, durante um breve período, com Evelyn Waugh, escritor inglês de personalidade difícil.
Sem papas na língua, como era seu timbre, comentou com um amigo: «Não te vejo há muito tempo, mas também tenho visto tão pouca gente porque – não sei se sabias – enlouqueci.»
Depois de recuperar, Evelyn escreveu um romance, “As Desventuras do Senhor Pinfold”, em que descreve o seu período alucinatório e as vozes que então ouvia.
O que Jaynes sugere é que antes do ano 1.000 a.c. a generalidade das pessoas desconhecia que a segunda voz – a que o Sr Pinfold ouvia – vinha de dentro de si.
Julgavam-na a voz de um deus.
Jaynes vai mesmo ao ponto de localizar a “voz dos deuses no hemisfério do cérebro oposto ao que controla a linguagem.
Terá sido o momento em que as pessoas se deram conta de que as vozes exteriores que lhes parecia ouvir vinham, efectivamente, de dentro de si mesmas.
Jaynes considera esta transição histórica como o alvor da consciência humana.
Os deuses seriam, então, vozes alucinadas que falavam dentro das cabeças das pessoas.
Assim, e numa espécie de inversão da hipótese da pedomorfose, os deuses alucinados começaram, primeiro, por desaparecer das mentes adultas e foram, depois, puxados para trás, para fases cada vez mais recuadas da infância, até às suas actuais sobrevivências sob a forma de fenómenos como o Binker ou o “homenzinho púrpura”. O problema desta versão é que não explica a persistência dos deuses, hoje, na idade adulta.
Talvez seja melhor não tratar os deuses como antepassados dos Brinkers ou vice-versa, mas antes encarar ambos como sub-produtos da mesma predisposição psicológica que têm em comum o poder de confortar.
Richard Dawkins
Nota – Michael Sermer, psicólogo americano que há vários anos se dedica a uma cruzada em defesa do pensamento científico contra as superestições.
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