Na Minha Aldeia
A CASA DA LENHA
Rapaz, disse-me o meu pai quando o sol desaparecia no horizonte: a partir de hoje, começa a ser Inverno nesta casa, vai ao chaveiro, leva a chave da casa da lenha e uma cesta e tráz cavacas para debaixo da chaminé.
Peguei num candeeiro a petróleo e segurando a chave na mão direita, lá fui andando na direcção da casa da lenha, a última do corrupio, já encostada ao muro que separava a propriedade do vizinho.
Não era fácil abrir a porta da casa da lenha, fechada desde o Inverno anterior, para além de que a chave, de ferro, era grande para a minha mão e era-me difícil manipulá-la, depois, havia o trinco, a aldraba e por fim a lingueta e todos aqueles sons metálicos a fazerem de acompanhamento sonoro que emprestava solenidade à abertura de uma porta nas casas antigas.
Empurrei-a com dificuldade empecilhada que estava pelos gravetos da lenha, alguém se tinha esquecido de varrer o chão como era de obrigação. Lentamente, levantei o candeeiro um pouco acima dos meus olhos e dei tempo a que a luz definisse os contornos do amontoado da lenha contra as paredes caiadas de branco, mais amareladas que brancas, convenhamos.
Finalmente, olhei para o chão e bem na minha frente, a uns três metros de distância, esperava-me um pequeno exército de ratinhos. À frente, aquele que deveria ser o chefe, cabecita levantada na minha direcção, bigodes espetados de um lado e de outro numa pose, toda ela, de desafio.
Atrás dele, em formação militar, filas de ratinhos, uns a seguir aos outros, todos eles, à imagem do chefe, cabecitas levantadas na minha direcção, bigodes eriçados, ar desafiador e hostil não deixando dúvidas de que eu não era bem recebido.
Não estavam ali por acaso, há muito que, de certo, me esperavam. Os mais velhos, aqueles que pela idade já não teriam forças para estarem na primeira linha, teriam avisado que um dia, que eles não saberiam qual, viria um humano estragar o seu belo castelo de cavacas e mais grave, levá-las, umas após outras… as suas belas cavacas!
Naquele momento, aguardando o desfecho da situação, lá atrás, escondidos com medo mas dispostos ao sacrifício, estariam com certeza, os familiares daqueles ratinhos-soldados, orgulhosos pela coragem e determinação dos que assumiram heroicamente a responsabilidade de uma luta tão desigual.
Eu estava perplexo, não sabia o que pensar. Talvez se saltasse para cima deles com as minhas botas de tacão e cano alto e pulasse e voltasse a pular com certeza que sairia vencedor esmagando-os a todos mas, algo me tolhia os movimentos e inibia a decisão… e se eles tivessem uma poção mágica, como a do Obelix?
Se assim fosse estaria explicada tanta coragem e ousadia que roçavam a loucura e o suicídio.
Defrontarem-me a mim, um humano? e eles simples ratinhos, tão pequeninos… hum!, teria que haver uma qualquer arma secreta!
Resolvi dar um passo em frente, seriam eles ou eu, aquela situação de impasse não podia continuar.
Avancei um passo, nem rápido nem lento, determinado, não deveria demonstrar medo, a vantagem era toda minha, essa era a minha convicção, era isso que eu tinha de lhes dar a entender.
Eles fizeram um recuo que percebi que era estratégico e como eram muito pequeninos, ao meu passo eles fizeram uma pequena corrida atrás sem alterarem entre si as posições e muito menos a atitude de hostilidade e desafio.
Depois, foi a minha vez de dar um passo atrás e eles, acto contínuo, uma corridinha à frente e tudo voltou à situação inicial.
Continuavam a olhar-me com os seus olhos muito pequeninos mas que irradiavam a enorme força e convicção dos seus propósitos, não era um desafio qualquer… para eles era a conquista do seu espaço, do seu território, o tudo ou nada, a vida ou a morte.
O meu olhar é que já não era o mesmo, a surpresa e perplexidade tinham desaparecido, tal como o meu natural instinto de esmagar o mais fraco.
Caí em mim, desinteressei-me das cavacas e percebi que estava perante a decisão suprema de um grupo que face ao direito à vida no seu espaço e no seu território, tinha decidido morrer com honra lutando sem hipóteses de vencer.
Eu seria um adversário imbatível, as minhas botas de tacão e cano alto, arma demasiado poderosa, a poção mágica apenas produto da minha imaginação, o destino daquela luta estava traçado à partida.
O massacre seria o desfecho inevitável e eu não estava preparado para ele. Sentia, no fundo, que a razão lhes assistia e o simples exercício da lei do mais forte deixou de fazer sentido.
Fortes, eram eles que morreriam corajosamente enquanto que eu não passaria de um simples executor sem honra nem glória.
Voltei-lhes as costas e regressei com a cesta vazia, não sem antes ouvir atrás de mim a porta da casa da lenha fechar-se com fragor.
Sentei-me ao pé de meu pai que olhou para a cesta e perguntou-me pelas cavacas da casa da lenha.
Deixei passar tempo sem responder, ele insistiu na pergunta: disse-lhe que já não tínhamos casa da lenha… pertencia, por direito próprio, a uma comunidade de heróicos ratinhos.
Não sei o que o meu pai respondeu, tão pouco se disse alguma coisa… entretanto acordei!
A CASA DA LENHA
Rapaz, disse-me o meu pai quando o sol desaparecia no horizonte: a partir de hoje, começa a ser Inverno nesta casa, vai ao chaveiro, leva a chave da casa da lenha e uma cesta e tráz cavacas para debaixo da chaminé.
Peguei num candeeiro a petróleo e segurando a chave na mão direita, lá fui andando na direcção da casa da lenha, a última do corrupio, já encostada ao muro que separava a propriedade do vizinho.
Não era fácil abrir a porta da casa da lenha, fechada desde o Inverno anterior, para além de que a chave, de ferro, era grande para a minha mão e era-me difícil manipulá-la, depois, havia o trinco, a aldraba e por fim a lingueta e todos aqueles sons metálicos a fazerem de acompanhamento sonoro que emprestava solenidade à abertura de uma porta nas casas antigas.
Empurrei-a com dificuldade empecilhada que estava pelos gravetos da lenha, alguém se tinha esquecido de varrer o chão como era de obrigação. Lentamente, levantei o candeeiro um pouco acima dos meus olhos e dei tempo a que a luz definisse os contornos do amontoado da lenha contra as paredes caiadas de branco, mais amareladas que brancas, convenhamos.
Finalmente, olhei para o chão e bem na minha frente, a uns três metros de distância, esperava-me um pequeno exército de ratinhos. À frente, aquele que deveria ser o chefe, cabecita levantada na minha direcção, bigodes espetados de um lado e de outro numa pose, toda ela, de desafio.
Atrás dele, em formação militar, filas de ratinhos, uns a seguir aos outros, todos eles, à imagem do chefe, cabecitas levantadas na minha direcção, bigodes eriçados, ar desafiador e hostil não deixando dúvidas de que eu não era bem recebido.
Não estavam ali por acaso, há muito que, de certo, me esperavam. Os mais velhos, aqueles que pela idade já não teriam forças para estarem na primeira linha, teriam avisado que um dia, que eles não saberiam qual, viria um humano estragar o seu belo castelo de cavacas e mais grave, levá-las, umas após outras… as suas belas cavacas!
Naquele momento, aguardando o desfecho da situação, lá atrás, escondidos com medo mas dispostos ao sacrifício, estariam com certeza, os familiares daqueles ratinhos-soldados, orgulhosos pela coragem e determinação dos que assumiram heroicamente a responsabilidade de uma luta tão desigual.
Eu estava perplexo, não sabia o que pensar. Talvez se saltasse para cima deles com as minhas botas de tacão e cano alto e pulasse e voltasse a pular com certeza que sairia vencedor esmagando-os a todos mas, algo me tolhia os movimentos e inibia a decisão… e se eles tivessem uma poção mágica, como a do Obelix?
Se assim fosse estaria explicada tanta coragem e ousadia que roçavam a loucura e o suicídio.
Defrontarem-me a mim, um humano? e eles simples ratinhos, tão pequeninos… hum!, teria que haver uma qualquer arma secreta!
Resolvi dar um passo em frente, seriam eles ou eu, aquela situação de impasse não podia continuar.
Avancei um passo, nem rápido nem lento, determinado, não deveria demonstrar medo, a vantagem era toda minha, essa era a minha convicção, era isso que eu tinha de lhes dar a entender.
Eles fizeram um recuo que percebi que era estratégico e como eram muito pequeninos, ao meu passo eles fizeram uma pequena corrida atrás sem alterarem entre si as posições e muito menos a atitude de hostilidade e desafio.
Depois, foi a minha vez de dar um passo atrás e eles, acto contínuo, uma corridinha à frente e tudo voltou à situação inicial.
Continuavam a olhar-me com os seus olhos muito pequeninos mas que irradiavam a enorme força e convicção dos seus propósitos, não era um desafio qualquer… para eles era a conquista do seu espaço, do seu território, o tudo ou nada, a vida ou a morte.
O meu olhar é que já não era o mesmo, a surpresa e perplexidade tinham desaparecido, tal como o meu natural instinto de esmagar o mais fraco.
Caí em mim, desinteressei-me das cavacas e percebi que estava perante a decisão suprema de um grupo que face ao direito à vida no seu espaço e no seu território, tinha decidido morrer com honra lutando sem hipóteses de vencer.
Eu seria um adversário imbatível, as minhas botas de tacão e cano alto, arma demasiado poderosa, a poção mágica apenas produto da minha imaginação, o destino daquela luta estava traçado à partida.
O massacre seria o desfecho inevitável e eu não estava preparado para ele. Sentia, no fundo, que a razão lhes assistia e o simples exercício da lei do mais forte deixou de fazer sentido.
Fortes, eram eles que morreriam corajosamente enquanto que eu não passaria de um simples executor sem honra nem glória.
Voltei-lhes as costas e regressei com a cesta vazia, não sem antes ouvir atrás de mim a porta da casa da lenha fechar-se com fragor.
Sentei-me ao pé de meu pai que olhou para a cesta e perguntou-me pelas cavacas da casa da lenha.
Deixei passar tempo sem responder, ele insistiu na pergunta: disse-lhe que já não tínhamos casa da lenha… pertencia, por direito próprio, a uma comunidade de heróicos ratinhos.
Não sei o que o meu pai respondeu, tão pouco se disse alguma coisa… entretanto acordei!
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