terça-feira, fevereiro 10, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 46





DA INSÓNIA NO LEITO DE DONA EUFROSINA, POVOADA DE EMOÇÕES, SENTIMENTOS E MEMÓRIAS



Na primeira noite, vencida pelo cansaço da viagem da marinete, rude prova, das emoções da chegada, após retirar a maquiagem, Tieta arriara na cama e dormira de um só sono.

Há quantos anos não se recolhia às nove horas da noite? Ainda mocinha, já atravessava a madrugada nos escondidos do Agreste.

Na segunda noite, porém, quando por volta das onze as últimas visitas despedem-se, Tieta prossegue acesa, sem sono. Na porta, ela e Leonora renovam os votos de êxito a Ascânio na missão cívica a conduzi-lo a Paulo Afonso.

- Vá e vença… - deseja Tieta.

- E volte…- acrescenta Leonora.

Aminthas declara-se pessimista sobre os resultados: luz Hidrelétrica? Bobagem, nem pensar. Terra esquecida dos políticos, município de eleitorado ralo, sem prestígio, sem um chefe capaz de falar grosso, de influir na directoria, de manobrar junto do Presidente da Empresa e das autoridades federais, Agreste está destinada a continuar com escassa luz de motor – enquanto – o motor ainda funciona. Depois, voltaremos aos fifós e placas, prevê, em alarmante presságio.

Ascânio merece todos os louvores, sujeito rectado, não se dá por vencido. Mas não tem prestígio político, força junto aos grandes, essa a verdade. Não é mesmo Ascânio? De facto, concorda o Secretário da Prefeitura. Nem por isso deixará de tentar.

Me perdoem senhoras e senhores mas eu sou contra essa luz de Paulo Afonso, forte, brilhante, iluminando as ruas a noite inteira – proclama Osnar – um desastre para os pobres caçadores nocturnos, vai afugentar a caça…

- Que caça? Quis saber Leonora.

- Descaração de Osnar, minha filha. Com caça ele quer dizer mulher, esses debochados ficam procurando mulher nas ruas…

- A caça já é vasqueira, imagine com essa iluminação toda…

Em risos se separam. Barbozinha declamando farrapos de poemas de amor de sua autoria, compostos todos, segundo diz, para uma única musa, adivinhem quem? Tieta eleva os olhos para os céus, põe a mão sobre o coração, suspira, gaiata. Perdem-se as visitas na escuridão. Despede-se também Leonora:

- Estou morta de sono. Boa noite, Mãezinha, estou adorando.

- Ainda bem. Tinha medo que você se chateasse.

No quarto, Tieta, abre a janela sobre o beco, espia a noite, o céu de estrelas. Nos tempos de moça sabia o nome de todas elas e gostava de fitá-las na hora do amor, quando leito era o capim da beira do rio. Durante quantas noites pulara aquela janela para encontrar Lucas?

Apaga o lampião, deita-se, cadê o sono? Ali está ela, outra vez em Agreste, em busca da moleca Tieta, pastora de cabras. Andara longo caminho, pisara pedras e cardos, rompera os pés e o coração, antes de começar a subir, a ganhar, juntar e aplicar dinheiro sob a orientação de Felipe, a ter propriedades e a ser senhora do seu nariz. Durante todos esses vinte e seis anos, imaginara a volta a Agreste, sonhara com esse dia.

Recorda o embaraço do desembarque, aflora-lhe aos lábios um sorriso: a família de luto cerrado, ela ostentando blusa e turbante vermelhos, Leonora em delavê azul, esposa e filha sem coração, desnaturadas. Ao chegar em casa, dissera em brusca explicação: para mim luto se carrega é no peito, coisa íntima; a dor da ausência não se exibe, nem a saudade; assim eu penso mas cada um deve pensar como quiser e agir de acordo.

Fim de papo, Perpétua. Zé Esteves apoiara em virulenta língua de sotaque: muito bem dito, minha filha, luto não passa de hipocrisia; eu só botei essa roupa preta para não ser tachado de cabra ruim, mas se nem conheci o teu finado porque havia de pôr luto? Só por que era rico? Fosse ou não da boca para fora, a própria Perpétua concordara: cada qual pensa à sua maneira e age de acordo. A dela era o respeito aos costumes antigos; vestida de negro por que com a morte do Major – Deus o tenha em sua guarda! – perdera o gosto pela vida. Mas não criticava Antonieta, respeitando seu ponto de vista; não sendo nenhuma ignorante sabe que em São Paulo ninguém liga para esses hábitos do passado.

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