segunda-feira, março 16, 2009




Os Meus Camaradas da Guerra

Colonial


Faz agora um ano que os encontrei de novo pela primeira vez, quarenta e três anos após termos desembarcado do Vera Cruz, no Cais da Rocha, vindos da guerra de Angola.

Estávamos em Março de 1965, éramos jovens e trazíamos saudades da família e dos amigos, saudades que alimentámos e foram crescendo ao longo de vinte e sete meses de uma espera contada dia a dia com risquinhos no calendário.

Finalmente o dia chegara e ali estávamos, debruçados na amurada do navio, olhando a curta distância os parentes e amigos que nos esperavam com ansiedade lá em baixo no cais.

Depois, foram os intermináveis abraços, as lágrimas e a debandada, cada um para seu lado, cada um à sua vida, como se aquele interregno de vinte e sete meses nas nossas vidas não tivesse acontecido, não contasse e viradas as costas ao barco e ao mar tudo se esquecesse rapidamente.

No sábado passado, quando no meu segundo almoço anual com os meus camaradas os voltei a abraçar, muitos deles pela primeira vez porque não tinham ido ao almoço do ano anterior – o Justino, meu amigo do peito, o inconfundível “Pétrack”, que me disseram já ter falecido, o “Quim Médico”, que na fazenda Rainha Santa me fez passar uma noite à sua cabeceira a velar por uma febre de mais de 40º de um paludismo que o atacou, o Zé Cozinheiro, entre outros - alicerçou-me a convicção, pelo entusiasmo das palavras, espontaneidade dos abraços e brilho nos olhares, que esses vinte e sete meses não estavam esquecidos, longe disso… nem tudo terá ficado gravado com precisão nas memórias, talvez alguma confusão no relato dos factos, mas que importância isso tem?

O que se recorda são as emoções, os medos, os sustos, as experiências, as aventuras quando tudo era uma aventura, é isso que se recorda, e os que estavam junto de nós nesses momentos, que os partilharam, que fizeram parte deles, confundiram-se connosco: sem eles a “minha guerra” não teria existido.

O inimigo nunca o vi, não se deixava ver, ele estava no olhar de medo e cumplicidade dos meus camaradas… como era estranha aquela guerra!

Sim, o medo, ele foi a chave da nossa sobrevivência, era preciso ter medo para estar alerta, para ter cuidado, para termos uma postura de guerreiros, para que o inimigo, estivesse ou não estivesse lá, percebesse que o nosso medo poderia ser a morte deles e não a nossa.

Medo do princípio até ao fim, do primeiro dia até ao último momento quando, finalmente, já estávamos fora de cena.

A história daquela guerra contou alguns mortos porque deixaram de ter medo em determinados momentos, ou não o tiveram mesmo até ao fim e morreram quando festejavam precocemente o fim da “sua guerra” na viagem de regresso a Luanda.

Eles tinham medo do nosso medo porque, paradoxalmente, o nosso medo era a nossa coragem. Sem medo éramos presas mais fáceis.

No princípio do ano de 1963, tirando uma determinada zona no norte de Angola onde se concentravam os melhores recursos humanos e de armamento do então inimigo, havia como que uma igualdade em matéria de experiência de guerra: eles estavam a começar, nós começávamos sempre a cada renovação dos contingentes militares.

Em fins de 1962, a guerra ainda fazia algum sentido para a generalidade de todos nós porque estavam frescas as imagens das atrocidades cometidas no Norte de Angola sobre a população indefesa: homens, mulheres, crianças, negros e brancos, pela UPA (União dos Povos de Angola) mas esse sentido foi-se perdendo quando os nossos generais e comandantes davam às tropas instruções para procedermos de igual modo e esta, terá sido apenas uma das razões.

Hoje, quando o Presidente José Eduardo dos Santos desembarca em Lisboa em visita oficial, acompanhado da filha, ele e ela das pessoas mais ricas do continente africano, apenas porque ele é o Presidente e ela a filha do Presidente e Comandante Chefe das Forças Armadas desde 1979, não posso deixar de sorrir, não fossem as vítimas da guerra, porque enquanto portugueses – eu e os meus camaradas da guerra incluídos - e angolanos, combatiam e morriam nas matas e nas picadas do norte de Angola, José Eduardo dos Santos, desde Novembro de 1961 coordenava, na segurança do exílio, a actividade da Juventude do MPLA….

Bem se pode dizer que “guardado está o bocado para quem o há-de comer”, e que bocado…

Bem, mas isto são coisas do presente a “meterem-se” com a “minha guerra e a dos meus camaradas”, passado e presente, presente e passado, e o tempo não pára e com ele envelhecemos.

Hoje, estamos todos na casa dos setenta, uns à beirinha, outros já entraram. Vencemos a guerra porque lhe sobrevivemos há 45 anos, e embora já na fase de balanço, continuamos na vida.

Projectos, se os havia, ou os realizámos ou se esfumaram para sempre. Ficaram as enxaquecas, as artroses, os bicos de papagaio, o reumático, a dor ciática e as preocupações com os netos.

Daqui por uns anos, esperemos que muitos, virá um novo contingente para nos render… desta vez rendição individual e então, "embarcaremos", não como fizemos há 45 anos, em Luanda, no Vera Cruz, para o Cais da Rocha do Conde de Óbidos mas, dessa vez, para um lugar incerto ou lugar nenhum.

Por isso, sempre que nos voltarmos a encontrar nos nossos almoços anuais, os abraços que trocarmos se, por um lado, vão sendo cada vez mais fracos porque as forças vão faltando, o seu sentido será, ano após ano, sempre mais forte:

- “Aguenta-te, pá, temos que continuar a ganhar a guerra da vida e agora, cada ano que passa, será uma vitória.”

É o ciclo da vida: primeiro viver, depois envelhecer e felizes os que podem cumprir este ciclo em paz e tranquilidade.

Recordo, de entre todos que não nos acompanharam na viagem de regresso, o meu amigo “Setúbal”da CªC. 389, apenas porque o conheci melhor: era um rapaz inteligente, muito educado, casado e com uma filha que nunca conheceu aquele que seria, de certo, um excelente pai.

Foi vítima de uma emboscada juntamente com outros camaradas. Morreu com um tiro na testa disparado de muito perto, não sofreu. À sua frente, talvez empunhada, a metralhadora Breda que vinha montada no Unimog e de que nada lhe valeu.

Há semanas que por ali passavam diariamente para irem dar protecção a um grupo de trabalhadores que andava a fazer obras de melhoria na estrada… nunca tinha acontecido nada.

Naquele dia iam distraídos, um lia revistas, o carro que os precedia estava demasiado longe e eles estavam lá, nos seus postos, esperando o dia, esperando o momento em que os nossos, finalmente, perdessem o medo.

Quero elegê-lo, enquanto for vivo, como a vítima que me foi mais querida, que mais me doeu de toda aquela guerra…o meu amigo “Setúbal”.

Para os generais que fazem as guerras e para os políticos que as decidem, para todos eles, o “Setúbal” foi apenas uma baixa, um número, um risco numa lista de vivos ao qual muitos outros se iriam acrescentar…era ainda só o princípio da guerra, de um imenso calvário que se haveria de estender à Guiné e a Moçambique e enlutar a família portuguesa, tudo com a assinatura desse “insigne” político chamado António de Oliveira Salazar, que decidiu conduzir-nos "orgulhosamente sós" no mundo.





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