quarta-feira, março 25, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 81


DO MEDO E DA VONTADE DISSOLVIDOS NO LUAR



Generala? Sozinha, deitada no alto das dunas, moleca de Agreste, pastora de cabras. O marulho ingente das ondas, o odor de maresia, música e perfume dos começos do mundo. No céu, a lua e as estrelas eternas.

Nos cômoros, ouvindo as vagas, nos oiteiros de terra pobre, no contacto com o rebanho indócil, fizera-se forte e decidida, aprendera a desejar com intensidade e a lutar para conseguir.

Mar bravio, terra árida, faces de um mesmo mundo agreste, duro, pobre e terrivelmente belo. Sentia-se plantada nas pedras onde as cabras saltavam e nas areias movidas pelo vento. Tinha da terra e do mar, da água doce e da salgada, correnteza de rio, ressaca do oceano. Aprendeu a não ter medo, a não fugir, a olhar de frente, a assumir a iniciativa. Tantas estrelas, incontáveis; quantos amores, o desejo preso na garganta, na ponta dos dedos, no fundo do estômago? Amores de fugidio instante, amor da vida inteira, o de Filipe.

Ninguém conta as estrelas, para que contar as ânsias, a boca seca, a necessidade urgente? O número não importa e sim o beijo, a morte e a vida juntas, uma coisa só. Em Mangue Seco, sobre a areia, em Agreste, nos esconsos do rio, cabra montês.

Em cama de casal somente Lucas, quando ela deixou a aridez dos oiteiros e descobriu os atalhos do prazer. Ei-la de novo ali, nãos coros, como da primeira vez. Tensa, pronta, à espera.

Longe, no rio, a luz, pode ser apenas o reflexo de uma estrela. Qualquer ruído se perde no rebentar dos vagalhões contra as montanhas de areia. Mas a lua cheia ilumina as dunas, suave claridade, macia. O vulto indeciso, no sopé dos cômoros, por qual se decidir? Tieta levanta-se, olha, advinha, reconhece. Modula o chamado da cabra, doce convocação de amor, berro ligeiro, sussurrado. Indicando rumo e desembarque.

Frente a frente, tia e sobrinho. Cardo veste calção e a camisa do Palmeiras que Tieta lhe enviou. Sorri sem jeito:

- A bênção, tia. Mãe mandou que viesse trazer uma encomenda, deixei na mão do comandante, lá em baixo.

- Foi só?

- Disse para eu ficar com senhora, lhe ajudando.

- Mas tu não queria vir.

Atrapalha-se o rapazinho, tenta esboçar um gesto, baixa os olhos. A evasiva, entre gaguejada orgulhosa:

- Está uma festa por lá, por causa da luz. O povo todo na rua, dando vivas pra tia. Diz que a tia…

- Tu tem medo de ficar não é?

A resposta se espelha na confusão do rosto aberto ao luar, franco, sem malícia. Tieta prossegue:

- Me monte. É comigo que tu sonhas aquelas coisas? Não minta.

O adolescente baixa os olhos:

- Todas as noites. Me perdoe, tia, não é por meu querer.

- E tu tem medo, foge de mim?

- Não adianta nada. Nem me esconder nem rezar. Até na reza, penso e vejo.

- Tu me acha bonita?

- Demais. Bonita e boa. Eu é que não presto, sou ruim de natureza ou bem é castigo de Deus.

- Castigo porquê?

- Não sei tia.

- Se tu não quer ficar pode ir embora. Em seguida, neste instante.

Aponta para baixo, deita-se de novo sobre a areia, o corpo exposto: a saia aberta, a blusa desatada. A voz de Ricardo chega de longe, do fundo do tempo:

- Estou com medo de ofender a Deus e de lhe ofender, tia, mas tenho vontade de ficar.

- Aqui, junto de mim?

- Se a tia deixar. – Os olhos incendeiam.

Na lonjura, espoca o clarão dos foguetes subindo ao céu, estrelas acendidas pelo povo de Agreste em honra e louvor da filha ilustre, da viúva rica e poderosa, da paulista com voz e mando no governo.

Tieta sorri, estende a mão:

- Tenha medo, não. Nem de mim, nem de Deus. Venha, se deite.

Os corpos flutuam no luar, na música das vagas. Lua, estrelas, mar, os mesmos do passado, iguais. Que importam idade, parentesco, batina de seminarista? Uma mulher, um homem, eternos. Aqui, nas dunas, chiba em cio, um dia distante ela começou. Tieta toca seu princípio.
Hoje, cabra de ubre farto, cansada de bode Inácio, defloradora de cabritos.

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