Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 103
Por isso mesmo, por causa da freguesia tão chique, não quero gente do Agreste aparecendo por lá. Imagine só, Carmô, a loja cheia, aquela nata de São Paulo, tudo podre de rico, e me aparece o pessoal daqui… Por isso nunca mandei endereço. Nas fábricas não importem que falem, que inventem o que quiserem, sabe por quê? Porque nas fábricas nada tenho, nem participação. Quando Felipe morreu, eu fiquei com os apartamentos, os imóveis e a butique que, aliás, já era minha, estava em meu nome – No caminho mal iluminado, busca enxergar na fisionomia da amiga se a explicação fora convincente ou não.
Dona Carmosina bebera-lhe as palavras, uma a uma. Assídua leitora de romances policiais, admiradora de Agatha Christie, sentia-se a própria Miss Maple perdida em Sant’Ana do Agreste. De dedução em dedução, espremendo as células cinzentas, partindo de pistas mínimas, tinha chegado à verdade: nada do que agora Tieta lhe contara constituíra surpresa para a presidenta do Areópago:
- Exactamente o que eu imaginava, butique de alto luxo, preços de arrancar o couro e a fidalguia toda de São Paulo deixando o dinheirinho lá. Você faz muito bem em guardar reserva sobre seus negócios e sua vida. Creio que, se Elisa soubesse de seu endereço em São Paulo, teria arranjado maneira de se tocar para lá. Não sonha outra coisa, a pobrezinha.
Tieta riu:
- Você já pensou a parentada de Agreste, a começar pelo velho Zé Esteves, de cajado, cuspindo fumo, em minha porta em São Paulo, invadindo a butique? Até que ia ser engraçado, só que estragava meu negócio para sempre.
Não fez referência a Elisa, como se não houvesse escutado o nome da irmã, mas dona Carmosina insiste, volta à carga:
- Você pensa levar Elisa para São Paulo, ela e Astério? É tudo o que ela deseja na vida, e me parece que…
Tema do desagrado de Tieta. Interrompeu a amiga antes que tomasse a peito a defesa da causa de Elisa:
- Levar para quê? Aqui, eles vivem direitinho com a renda da loja e a ajuda que eu dou. Sem que eu lhe perguntasse nada, outro dia ela me disse que não quer ter casa própria em Agreste. Vive falando em São Paulo, insinuando um convite, não tem outro assunto. Posso até aumentar a ajuda que dou a eles, mas levá-los para São Paulo, isso não.
- Posso perguntar por quê? Gosto de Elisa e queria vê-la feliz.
- Eu também desejo que ela seja feliz, também gosto dela, é minha irmã e sei que ela gosta de mim, não é hipócrita como Perpétua. Mas eu gosto dela e gosto também de Astério, Carmô. Aqui Astério vive contente, para ele São Paulo ia ser um degredo. Adoro ver pessoas felizes, é tão raro no mundo. Sei o que é ser infeliz, roí beira de penico quando fui embora. Tive sorte, encontrei um homem bom, o meu marido. Família sortuda, Carmô: Perpétua com aquela cara, arranjou marido, milagre considerável, não foi o que o Comandante disse ontem? Milagre maior aconteceu comigo: eu era uma reles empregadinha no escritório de Felipe, acabei de aliança no dedo – Exibe a aliança de ouro, diferente, trabalhada peça digna de antiquário – Também Elisa deu sorte, casou, Astério é um bom rapaz, gosto dele. Em São Paulo, Astério ia ser mais infeliz do que Elisa é aqui.
- Será?
- Tenho a certeza. Aqui, ele tem amigos, de quem iria ser amigo em São Paulo? Não é homem para aquela correria, aquele Deus nos acuda. E ela ia ser feliz em São Paulo, tua amiga Elisa? Tu conhece ela melhor do que eu, tu viu ela nascer, nós duas vimos, se lembra? Tu acha que Elisa, em São Paulo, vai aguentar marido ganhando ordenadinho pequeno, que grande coisa ele não sabe fazer, vida modesta, com a estampa de rainha que ela tem? Me diga Carmô. Com aquela beleza? Sabe onde ela ia terminar? Num rendevu, fazendo a vida. Será essa a felicidade que ela procura?
Dona Carmosina estremece, as palavras de Tieta ressoam-lhe no crânio, marteladas na cabeça. Desiste de lutar pela protegida. Prometera fazê-lo quando Elisa, quase chorando, lhe suplicara: fale com Tieta, diga que eu quero ir com ela, peça um emprego na fábrica para Astério, um cantinho no duplex para nós.
- Você tem razão, não dá pé. Ia terminar mal. Como não pensei nisso, meu Deus? Você é ainda melhor irmã do que parece.
- Conheço minhas cabras. Foi bom você ter-me falado nisso, eu estava mesmo querendo lhe pedir para tirar essas ideias da cabeça de Elisa, ela lhe ouve muito. Aqui, ela e Astério podem contar comigo. Fora daqui, nada.
EPISÓDIO Nº 103
Por isso mesmo, por causa da freguesia tão chique, não quero gente do Agreste aparecendo por lá. Imagine só, Carmô, a loja cheia, aquela nata de São Paulo, tudo podre de rico, e me aparece o pessoal daqui… Por isso nunca mandei endereço. Nas fábricas não importem que falem, que inventem o que quiserem, sabe por quê? Porque nas fábricas nada tenho, nem participação. Quando Felipe morreu, eu fiquei com os apartamentos, os imóveis e a butique que, aliás, já era minha, estava em meu nome – No caminho mal iluminado, busca enxergar na fisionomia da amiga se a explicação fora convincente ou não.
Dona Carmosina bebera-lhe as palavras, uma a uma. Assídua leitora de romances policiais, admiradora de Agatha Christie, sentia-se a própria Miss Maple perdida em Sant’Ana do Agreste. De dedução em dedução, espremendo as células cinzentas, partindo de pistas mínimas, tinha chegado à verdade: nada do que agora Tieta lhe contara constituíra surpresa para a presidenta do Areópago:
- Exactamente o que eu imaginava, butique de alto luxo, preços de arrancar o couro e a fidalguia toda de São Paulo deixando o dinheirinho lá. Você faz muito bem em guardar reserva sobre seus negócios e sua vida. Creio que, se Elisa soubesse de seu endereço em São Paulo, teria arranjado maneira de se tocar para lá. Não sonha outra coisa, a pobrezinha.
Tieta riu:
- Você já pensou a parentada de Agreste, a começar pelo velho Zé Esteves, de cajado, cuspindo fumo, em minha porta em São Paulo, invadindo a butique? Até que ia ser engraçado, só que estragava meu negócio para sempre.
Não fez referência a Elisa, como se não houvesse escutado o nome da irmã, mas dona Carmosina insiste, volta à carga:
- Você pensa levar Elisa para São Paulo, ela e Astério? É tudo o que ela deseja na vida, e me parece que…
Tema do desagrado de Tieta. Interrompeu a amiga antes que tomasse a peito a defesa da causa de Elisa:
- Levar para quê? Aqui, eles vivem direitinho com a renda da loja e a ajuda que eu dou. Sem que eu lhe perguntasse nada, outro dia ela me disse que não quer ter casa própria em Agreste. Vive falando em São Paulo, insinuando um convite, não tem outro assunto. Posso até aumentar a ajuda que dou a eles, mas levá-los para São Paulo, isso não.
- Posso perguntar por quê? Gosto de Elisa e queria vê-la feliz.
- Eu também desejo que ela seja feliz, também gosto dela, é minha irmã e sei que ela gosta de mim, não é hipócrita como Perpétua. Mas eu gosto dela e gosto também de Astério, Carmô. Aqui Astério vive contente, para ele São Paulo ia ser um degredo. Adoro ver pessoas felizes, é tão raro no mundo. Sei o que é ser infeliz, roí beira de penico quando fui embora. Tive sorte, encontrei um homem bom, o meu marido. Família sortuda, Carmô: Perpétua com aquela cara, arranjou marido, milagre considerável, não foi o que o Comandante disse ontem? Milagre maior aconteceu comigo: eu era uma reles empregadinha no escritório de Felipe, acabei de aliança no dedo – Exibe a aliança de ouro, diferente, trabalhada peça digna de antiquário – Também Elisa deu sorte, casou, Astério é um bom rapaz, gosto dele. Em São Paulo, Astério ia ser mais infeliz do que Elisa é aqui.
- Será?
- Tenho a certeza. Aqui, ele tem amigos, de quem iria ser amigo em São Paulo? Não é homem para aquela correria, aquele Deus nos acuda. E ela ia ser feliz em São Paulo, tua amiga Elisa? Tu conhece ela melhor do que eu, tu viu ela nascer, nós duas vimos, se lembra? Tu acha que Elisa, em São Paulo, vai aguentar marido ganhando ordenadinho pequeno, que grande coisa ele não sabe fazer, vida modesta, com a estampa de rainha que ela tem? Me diga Carmô. Com aquela beleza? Sabe onde ela ia terminar? Num rendevu, fazendo a vida. Será essa a felicidade que ela procura?
Dona Carmosina estremece, as palavras de Tieta ressoam-lhe no crânio, marteladas na cabeça. Desiste de lutar pela protegida. Prometera fazê-lo quando Elisa, quase chorando, lhe suplicara: fale com Tieta, diga que eu quero ir com ela, peça um emprego na fábrica para Astério, um cantinho no duplex para nós.
- Você tem razão, não dá pé. Ia terminar mal. Como não pensei nisso, meu Deus? Você é ainda melhor irmã do que parece.
- Conheço minhas cabras. Foi bom você ter-me falado nisso, eu estava mesmo querendo lhe pedir para tirar essas ideias da cabeça de Elisa, ela lhe ouve muito. Aqui, ela e Astério podem contar comigo. Fora daqui, nada.
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