Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 107
DO VERDADEIRO INFERNO
Nas trevas da noite acorrem os demónios. Durante o dia, atendendo e ajudando os operários, trabalhando como se fosse um deles, serrando troncos de coqueiros, revolvendo a massa de barro, areia e cimento, transportando tijolos na canoa do velho Jonas, na qual atravessa a arrebentação da barra para ir ao arraial do Saco, Ricardo esquece a chaga exposta no peito, o pecado e a condenação. Chega a conceder esperança de perdão como se nada de grave houvesse sucedido.
Na canoa, durante a breve travessia, ao fitar a face plácida de Jonas, ouvindo-lhe a voz monocórdia, de imutável diapasão, acontece-lhe sentir por vezes repentino interesse pela vida. Pitando o cachimbo de barro, dominando a embarcação, mantendo-lhe o rumo, Jonas desenrola o novelo das histórias por ali acontecidas, casos de tubarões, aventuras de pesca e contrabando, atrapalhados, equívocos amores de Claudionor das Virgens. Sempre o trovador aparece por aquelas bandas, pode-se apostar sem medo de perder: vai acabar em arrelia e confusão, mulherengo como ele não há outro. Jonas puxa fumaça do cachimbo, compara:
- Femieiro que nem padre cura…
Que nem um padre-cura? E por quê? Jonas ri, um riso descansado, ao recordar a condição de Ricardo, aprendiz de padre, fornece explicação e conselho, envelheceu no mar, perdeu o braço esquerdo pescando cações, recolhendo contrabando, nada da vida lhe é estranho ou indiferente:
- Tu vai ser padre, pois fique logo sabendo que padre sem cantiga de mulher não presta. Como há-de entender o povo se não sabe fazer menino? Andou um desses no arraial, de nome Abdias, não se deu com ninguém, as mulheres tinham medo dele, a Igreja ficou vazia. Já no tempo do padre Felisberto, que viveu no saco uns cinco anos, por causa do reumatismo, um padre direito com comadre e sete filhos, a devoção era grande, até nós, de Mangue Seco, vinha pra missa ouvir ele falar, cada sermão mais desenvolvido, contando como o céu é bonito, com música e festa todos os dias. Não era como o outro que, por desconhecer mulher, vivia no inferno, só sabia da maldade. Padre que não cheira xibiu, cheira a cu, não presta.
Sem se importar com o escândalo a reflectir-se no rosto de Ricardo, Jonas manobra a canoa e conclui sua filosofia:
- Nenhum homem pode viver sem mulher, é contra a lei de Deus. Para que Deus fez Adão e Eva senão para isso? Me responda se puder.
O moço não responde mas da mesma maneira que a labuta na construção da casa, a tosca visão de Jonas lhe dá ânimo e esperança de desatar o nó do desespero.
Desatá-lo ou cortá-lo com o fio agudo do desejo quando ela, a tia, alegre e aloucada, rompe as comportas do medo e da contenção em que ele se afoga.
Na presença de Tieta esquece a chaga aberta no peito, o pecado, o voto rompido, a condenação, mesmo sendo noite e estando os demónios soltos. A presença, o riso, a voz morna, o amplexo, a boca, as mãos, as coxas, o ventre aceso valem lepra, estigma e inferno.
EPISÓDIO Nº 107
DO VERDADEIRO INFERNO
Nas trevas da noite acorrem os demónios. Durante o dia, atendendo e ajudando os operários, trabalhando como se fosse um deles, serrando troncos de coqueiros, revolvendo a massa de barro, areia e cimento, transportando tijolos na canoa do velho Jonas, na qual atravessa a arrebentação da barra para ir ao arraial do Saco, Ricardo esquece a chaga exposta no peito, o pecado e a condenação. Chega a conceder esperança de perdão como se nada de grave houvesse sucedido.
Na canoa, durante a breve travessia, ao fitar a face plácida de Jonas, ouvindo-lhe a voz monocórdia, de imutável diapasão, acontece-lhe sentir por vezes repentino interesse pela vida. Pitando o cachimbo de barro, dominando a embarcação, mantendo-lhe o rumo, Jonas desenrola o novelo das histórias por ali acontecidas, casos de tubarões, aventuras de pesca e contrabando, atrapalhados, equívocos amores de Claudionor das Virgens. Sempre o trovador aparece por aquelas bandas, pode-se apostar sem medo de perder: vai acabar em arrelia e confusão, mulherengo como ele não há outro. Jonas puxa fumaça do cachimbo, compara:
- Femieiro que nem padre cura…
Que nem um padre-cura? E por quê? Jonas ri, um riso descansado, ao recordar a condição de Ricardo, aprendiz de padre, fornece explicação e conselho, envelheceu no mar, perdeu o braço esquerdo pescando cações, recolhendo contrabando, nada da vida lhe é estranho ou indiferente:
- Tu vai ser padre, pois fique logo sabendo que padre sem cantiga de mulher não presta. Como há-de entender o povo se não sabe fazer menino? Andou um desses no arraial, de nome Abdias, não se deu com ninguém, as mulheres tinham medo dele, a Igreja ficou vazia. Já no tempo do padre Felisberto, que viveu no saco uns cinco anos, por causa do reumatismo, um padre direito com comadre e sete filhos, a devoção era grande, até nós, de Mangue Seco, vinha pra missa ouvir ele falar, cada sermão mais desenvolvido, contando como o céu é bonito, com música e festa todos os dias. Não era como o outro que, por desconhecer mulher, vivia no inferno, só sabia da maldade. Padre que não cheira xibiu, cheira a cu, não presta.
Sem se importar com o escândalo a reflectir-se no rosto de Ricardo, Jonas manobra a canoa e conclui sua filosofia:
- Nenhum homem pode viver sem mulher, é contra a lei de Deus. Para que Deus fez Adão e Eva senão para isso? Me responda se puder.
O moço não responde mas da mesma maneira que a labuta na construção da casa, a tosca visão de Jonas lhe dá ânimo e esperança de desatar o nó do desespero.
Desatá-lo ou cortá-lo com o fio agudo do desejo quando ela, a tia, alegre e aloucada, rompe as comportas do medo e da contenção em que ele se afoga.
Na presença de Tieta esquece a chaga aberta no peito, o pecado, o voto rompido, a condenação, mesmo sendo noite e estando os demónios soltos. A presença, o riso, a voz morna, o amplexo, a boca, as mãos, as coxas, o ventre aceso valem lepra, estigma e inferno.
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