Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 94
CAPÍTULO ONDE TIETA BUSCA DEFINIR O AMOR E NÃO CONSEGUE
Tieta deixa os namorados na porta da rua, sozinhos, livres para a despedida. Da sombra do corredor, porém, espicha o olho para ver o que se passa, onde as mãos vão parar, a força dos beijos, os lábios vorazes, as línguas se enrolando, aqueles primeiros passos no caminho do resto. Decepção completa e inquietante. Viu apenas um roçar dos lábios de Ascânio na face de Leonora, receoso e apressado, aquilo não era beijo coisíssima nenhuma, perdera o tempo a espionar o mais completo e acabado par de idiotas. Da porta, onde demora até perde-lo de vista, Leonora acena longo adeus, certamente respondido por Ascânio. Mau sinal, não agrada a Tieta o rumo do idílio.
Leonora não correrá perigo de maior se terminarem, ela e Ascânio, na Bacia de Catarina, em noite sem lua, por entre a penedia, no bem-bom. Depois, é lavar o xibiu bem lavado, acabou-se. Quando chegar a hora do retorno a São Paulo, derramará algumas lágrimas de tristeza e saudade no ônibus de volta – c’est finie la comedie, como dizia Madame Georgette e Madame Antoinette repete quando enfrenta xodós e rabichos das meninas.
O perigo reside exactamente nos leves beijos medrosos, nesse namoro tonto, de caboclo, que já não se usa mais. Em Agreste, quando se namora assim, no respeito, contendo os impulsos, é porque se tem em mira noivado e casamento. Casamento, vida em agreste: ilusões absurdas, sonhos delirantes. Em tais casos, não basta lavar a xoxota bem lavada. A separação custa duro sofrimento, não se reduz a umas poucas de lágrimas no ônibus de volta.
Naquele dia, quando Tieta chegara de Mangue Seco, estuante de vida, vibrando de animação ao falar do terreno e da casa de praia, mais magra, o corpo no ponto exacto, Leonora caíra-lhe nos braços, murmurando-lhe ao ouvido, ansiosa:
- Preciso muito de conversar com você, Mãezinha.
Durante o dia não tiveram ocasião, porém, de ficarem sós. Perpétua sempre presente, a adular a irmã, já não lhe regateava louvores. Antigo poço de iniquidades, Antonieta passara a ser poço de Jacó, misericórdia dos sedentos, turris ebúrnea. Para gabá-la gastava até as poucas expressões latinas que decorara em tantos anos de sacristia, antes reservadas à exaltação do Senhor e dos santos sendo, turris ebúrnea exclusiva de Virgem Maria. Agora, tudo era pouco para as virtudes de Tieta.
Na hora do almoço, a mesa completa: Zé Esteves e Tonha, Elisa e Astério, Peto a pedir a bênção à tia, a regalar os olhos da carnação morena e farta. Fazendo-lhe companhia na praia, quem estava bem situado para brechar até fartar-se, para bispar os mínimos detalhes, era Ricardo; mas o idiota do irmão desviava a vista para não enxergar, tirado a ermitão, a místico. Devia estar de venda nos olhos em Mangue Seco, o bobalhão; Deus dá nozes a quem não tem dentes, queixara-se Osnar. Falou, pô!
À tarde foram a casa de dona Zulmira para confirmar o acerto e de lá ao cartório, deixar os dados para a escritura e marcar o dia de assiná-la – quanto antes melhor, pedira Tieta, com pressa de voltar a Mangue Seco. As paredes da choupana – assim designava a pequena casa da praia – começavam a subir, ela curtia cada tijolo, cada pá de massa, em companhia do sobrinho contagiado pelo seu entusiasmo. De noite a sala de visitas se enchera: dona Carmosina, dona Milú, Barbozinha, a tropa do bilhar escoltando Astério; Ascânio tinha aparecido ao fim da tarde, ficava para jantar, não desgrudava de Leonora.
Também dona Carmosina anunciara necessidade imperiosa e urgente de longa conversa reservada com Tieta. Marcaram para o dia seguinte. Amanhã sem falta! – recordara a agente dos Correios ao despedir-se – mil coisas a comentar. Com os olhos apontava o par de namorados no sofá, distanciados um do outro pelo menos um palmo, a paulista com um sorriso babado de admiração, ouvindo o discurso de Ascânio sobre o radioso futuro de Agreste.
Ascânio, o último a sair, quando já Perpétua se recolhera: às seis em ponto, ajoelhada na primeira fila, a devota ouve missa na Matriz, não pode dormir tarde. Tieta abandona-os na porta, à vontade para a despedida apaixonada. Que fracasso!
Leonora vem sentar-se na cama da alcova, enquanto Tieta desfaz a maquiagem. Abre o coração: apaixonada, que fazer? Paixão roxa, não banal aventura, simples chamego, ela não era disso, Mãezinha a conhecia, nesses três anos de refúgio jamais tivera um caso. Amo, pela primeira vez.
- Me diga como agir, Mãezinha. Contar a verdade, não posso.
- Não pode mesmo, nem pense nisso. Só se ficasse doida e me tivesse ódio.
- Nunca pensei, como poderia contar? Mas estou desarvorada sem saber o que fazer. Me ajude nesse transe, Mãezinha. Só tenho você no mundo.
CAPÍTULO ONDE TIETA BUSCA DEFINIR O AMOR E NÃO CONSEGUE
Tieta deixa os namorados na porta da rua, sozinhos, livres para a despedida. Da sombra do corredor, porém, espicha o olho para ver o que se passa, onde as mãos vão parar, a força dos beijos, os lábios vorazes, as línguas se enrolando, aqueles primeiros passos no caminho do resto. Decepção completa e inquietante. Viu apenas um roçar dos lábios de Ascânio na face de Leonora, receoso e apressado, aquilo não era beijo coisíssima nenhuma, perdera o tempo a espionar o mais completo e acabado par de idiotas. Da porta, onde demora até perde-lo de vista, Leonora acena longo adeus, certamente respondido por Ascânio. Mau sinal, não agrada a Tieta o rumo do idílio.
Leonora não correrá perigo de maior se terminarem, ela e Ascânio, na Bacia de Catarina, em noite sem lua, por entre a penedia, no bem-bom. Depois, é lavar o xibiu bem lavado, acabou-se. Quando chegar a hora do retorno a São Paulo, derramará algumas lágrimas de tristeza e saudade no ônibus de volta – c’est finie la comedie, como dizia Madame Georgette e Madame Antoinette repete quando enfrenta xodós e rabichos das meninas.
O perigo reside exactamente nos leves beijos medrosos, nesse namoro tonto, de caboclo, que já não se usa mais. Em Agreste, quando se namora assim, no respeito, contendo os impulsos, é porque se tem em mira noivado e casamento. Casamento, vida em agreste: ilusões absurdas, sonhos delirantes. Em tais casos, não basta lavar a xoxota bem lavada. A separação custa duro sofrimento, não se reduz a umas poucas de lágrimas no ônibus de volta.
Naquele dia, quando Tieta chegara de Mangue Seco, estuante de vida, vibrando de animação ao falar do terreno e da casa de praia, mais magra, o corpo no ponto exacto, Leonora caíra-lhe nos braços, murmurando-lhe ao ouvido, ansiosa:
- Preciso muito de conversar com você, Mãezinha.
Durante o dia não tiveram ocasião, porém, de ficarem sós. Perpétua sempre presente, a adular a irmã, já não lhe regateava louvores. Antigo poço de iniquidades, Antonieta passara a ser poço de Jacó, misericórdia dos sedentos, turris ebúrnea. Para gabá-la gastava até as poucas expressões latinas que decorara em tantos anos de sacristia, antes reservadas à exaltação do Senhor e dos santos sendo, turris ebúrnea exclusiva de Virgem Maria. Agora, tudo era pouco para as virtudes de Tieta.
Na hora do almoço, a mesa completa: Zé Esteves e Tonha, Elisa e Astério, Peto a pedir a bênção à tia, a regalar os olhos da carnação morena e farta. Fazendo-lhe companhia na praia, quem estava bem situado para brechar até fartar-se, para bispar os mínimos detalhes, era Ricardo; mas o idiota do irmão desviava a vista para não enxergar, tirado a ermitão, a místico. Devia estar de venda nos olhos em Mangue Seco, o bobalhão; Deus dá nozes a quem não tem dentes, queixara-se Osnar. Falou, pô!
À tarde foram a casa de dona Zulmira para confirmar o acerto e de lá ao cartório, deixar os dados para a escritura e marcar o dia de assiná-la – quanto antes melhor, pedira Tieta, com pressa de voltar a Mangue Seco. As paredes da choupana – assim designava a pequena casa da praia – começavam a subir, ela curtia cada tijolo, cada pá de massa, em companhia do sobrinho contagiado pelo seu entusiasmo. De noite a sala de visitas se enchera: dona Carmosina, dona Milú, Barbozinha, a tropa do bilhar escoltando Astério; Ascânio tinha aparecido ao fim da tarde, ficava para jantar, não desgrudava de Leonora.
Também dona Carmosina anunciara necessidade imperiosa e urgente de longa conversa reservada com Tieta. Marcaram para o dia seguinte. Amanhã sem falta! – recordara a agente dos Correios ao despedir-se – mil coisas a comentar. Com os olhos apontava o par de namorados no sofá, distanciados um do outro pelo menos um palmo, a paulista com um sorriso babado de admiração, ouvindo o discurso de Ascânio sobre o radioso futuro de Agreste.
Ascânio, o último a sair, quando já Perpétua se recolhera: às seis em ponto, ajoelhada na primeira fila, a devota ouve missa na Matriz, não pode dormir tarde. Tieta abandona-os na porta, à vontade para a despedida apaixonada. Que fracasso!
Leonora vem sentar-se na cama da alcova, enquanto Tieta desfaz a maquiagem. Abre o coração: apaixonada, que fazer? Paixão roxa, não banal aventura, simples chamego, ela não era disso, Mãezinha a conhecia, nesses três anos de refúgio jamais tivera um caso. Amo, pela primeira vez.
- Me diga como agir, Mãezinha. Contar a verdade, não posso.
- Não pode mesmo, nem pense nisso. Só se ficasse doida e me tivesse ódio.
- Nunca pensei, como poderia contar? Mas estou desarvorada sem saber o que fazer. Me ajude nesse transe, Mãezinha. Só tenho você no mundo.
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