Os ateus são sensíveis ao sofrimento humano, às manifestações de aflição, ao desespero e aos dramas individuais que exoneram a razão dos comportamentos. Já não podem ter a mesma benevolência para quem convence os crentes do gozo divino com as chagas nos joelhos e as maratonas pedestres ou com a oferta de objectos de ouro que atravessaram gerações na mesma família para acabarem no cofre forte da agiotagem mística.
Os alegados milagres das cambalhotas solares, das deambulações campestres da virgem e da aterragem de um anjo não foram originais nem exclusivas da Cova da Iria. Foram tentados em outras latitudes e repetidos em versões diferentes até atingirem a velocidade de cruzeiro da devoção popular e o pico da fama que tornou rentável a exploração.
Há um ano o cardeal Saraiva Martins, um clérigo atrofiado por longos anos de Vaticano, dedicado à investigação de milagres e à pesquisa da santidade, presidiu à peregrinação... contra o ateísmo. Podia ser a favor da fé, mas o gosto do conflito levou a Igreja a deixar cair a máscara da paz e a seguir o carácter belicista que carrega no código genético.
Há militares que regressaram há mais de quarenta anos da guerra colonial e que, ainda hoje, vão a Fátima agradecer o milagre do retorno, milagre que muitos milhares não tiveram, vítimas da civilização cristã e ocidental para cuja defesa o cardeal Cerejeira os conclamava.
Perdido o Império, desmoronado o comunismo, o negócio mudou de rumo e de ramo. É o emprego que se mendiga a troco de cordões de oiro, a saúde que se implora de vela na mão, a cura suplicada com cheiro a incenso e borrifos de água benta. Enquanto houver sofrimento o negócio floresce. Dos bolsos saem os euros dos peregrinos e os olhos dos crentes enchem-se de lágrimas perante a imagem de barro que a coreografia pia carrega de emoção.
Para o ano, no mesmo dia, repete-se a encenação e os corações dos devotos rejubilam com fé na virgem, igual à que os índios devotam às fogueiras para atraírem chuva. Com os joelhos esfolados, os pés doridos e o coração a sangrar.
posted by Carlos Esperança @ 12:18 PM 1 comments
COMENTÁRIO:
A crença religiosa, infelizmente, não se vence nem pelas evidências mais óbvias nem pelas acusações mais certeiras. A necessidade de acreditar mergulha nos primódios da nossa evolução e, se então, constituiu factor de sobrevivência, de há muito que, hábilmente aproveitada, se transformou em instrumento de manipulação de consciências tendo em vista o poder, o poder espiritual que, entre nós, o mundo católico, já foi também temporal.
Factor de instabilidade das nossas sociedades é hoje, como sempre foi, um grande e escandaloso negócio.
Por ironia, a crença é como uma espécie de "cruz" que a humanidade transporta às costas para infelicidade sua.
Triunfar sobre ela, apenas pelo uso da razão e do conhecimento. Há progressos...mas irá levar tempo. A libertação do fenómeno da crença é uma tarefa pessoal que exige coragem especialmente para todos os que a receberam como uma das mais precoces e importantes heranças.
Entretanto, nada poderemos fazer por aquela mãe que, caminhando de gatas, com a filha de tenra idade deitada a dormir sobre as costas, lá ia em peregrinação na direcção da cova da Cova da Iria.
Espetáculo degradante que constitui a melhor garantia de negócio para a Igreija no futuro próximo...
Nem um, daqueles padres progressistas que por lá deveriam estar, lhe estendeu a mão para a levantar e caminhar erecta com a recomendação de que os caminhos para Deus, ou para onde forem, não se alcançam a rastejar como os bichos. De pé, "de pé como as árvores" como dizia a saudosa Palmira Bastos.
A imagem repugna-lhes, por um lado, mas agrada-lhes por outro... são o seu exército, educado, preparado para obedecer, a eles, que se reclamam de intermediários, representantes, interlocutores de Deus que ali se confunde com a Srª de Fátima, com os mesmos poderes de cura e de milagres e como muitas outras Senhoras espalhadas por outros tantos locais de culto.
E transcrevendo José Carlos Espada:
- "Para o ano, no mesmo dia, repete-se a encenação e os corações dos devotos rejubilam de fé na virgem, igual à dos índios que devotam às fogueiras para atrairem chuva".
Em termos de fé, ficámos lá, na fogueira, na dança da chuva...
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