sábado, maio 02, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 119



- Namoro em São Paulo, Ascânio, não é como aqui, noivado, muito menos – recordava as palavras de Tieta e as repetia – Lá os noivos vão a festas sozinhos, a boates, voltam pela madrugada, até viajam juntos. No Sul, moça para casar não precisa ser virgem. O preconceito da virgindade, porque é simples preconceito… É como se ela fosse viúva…

- Leonora? O tal noivo não é mais…

Leu a resposta nos olhos mínimos de dona Carmosina. Cobriu o rosto com as mãos, de súbito esvaziado e inerme. Um desejo único o assaltou: matar o canalha que conspurcara a pureza de Nora e, que ao fazê-lo, destruíra o mais belo dos sonhos.

Dona Milú vinha da cozinha com uma bandeja, cafezinho acabado de coar, bolos de milho e puba. Ascânio levantou-se e partiu, sem uma palavra.

Sabê-la deflorada foi dura prova. Atravessou os quintos do inferno e não pôde conter as lágrimas por mais se acreditasse macho, infenso ao choro.

Quando recebera a carta de Astrud, rompendo o noivado e comunicando o próximo casamento, e logo depois a soube grávida do outro, sofrera como um cão danado mas nem assim chorara. Na noite indormida porém, após a notícia pungente, o ardor dos olhos fixos dissolve-se em pranto.
Noite de pesadelo, de lágrimas e meditação, de luta consigo mesmo. Antes de ouvir a sentença de morte da boca de dona Carmosina, Ascânio deixara Leonora na porta, a acenar adeus da casa de Perpétua, íntegra, pura, perfeita. Imagem para sempre perdida, jamais a reverá assim completa. Agora, manchada, penetrada, rota, desonrada, nem por inocente vítima deflorada. Noite em que o amor foi medido, pesado, confrontado, sujeito a todas as provas de uma vez, noite da batalha inicial contra o preconceito. Preconceito, simples preconceito, dissera dona Carmosina e tinha razão. Muitas vezes, na faculdade, Ascânio participara em discussões sobre o candente tema: virgindade e casamento. Teoricamente, tudo simples e fácil: mero preconceito feudal.

Citando o exemplo dos Estados Unidos e dos países mais adiantados da Europa: França, Inglaterra, Suécia, Dinamarca, Noruega, sem falar nos países socialistas, onde, segundo os reaccionários, campeava o amor livre, os estudantes progressistas, entre os quais Ascânio, defendiam o direito da mulher à vida sexual antes do matrimónio. Por que apenas o homem tem esse direito? Preconceito patriarcal, machismo, opressão do homem sobre a mulher, atraso social, os argumentos sucediam-se esmagadores mas, ainda assim, a maioria se mantinha apegada à exigência secular: a mulher deva chegar virgem ao leito conjugal, deixar sobre o alvo lençol as gotas de sangue, dote do marido. Não adiantavam sequer as perguntas irónicas dos mais exaltados e cáusticos, querendo saber a diferença entre a cópula e as desenfreadas sacanagens de todo o tipo empreendidas por namorados e noivos, a bolinação levada aos últimos extremos, dedo e língua, pau nas coxas, na bunda e etecetera e tal. Que adianta respeitar o hímen e conspurcar o resto? Argumentos todos eles irrespondíveis mas nem por isso convincentes para a maior parte dos universitários. Exaltadas e inconsequentes, as discussões acabavam descambando para o relato de anedotas frascarias sem que chegassem a acordo.

Ao rememorar na noite interminável de amargura e indagação, os debates com os colegas, Ascânio lembrou-se da surpreendente declaração de máximo Lima, tanto mais inesperada por ser o colega líder inconteste da esquerda estudantil, celebrada pelo radicalismo de suas posições ideológicas, expostas em inflamados discursos contra a economia e moral burguesas. Amigos fraternos desde o tempo de ginásio, Ascânio via em Máximo a expressão mais alta e sincera do revolucionário, liberto de abusões e convencionalismos, lúcido e consciente. Ele próprio, Ascânio, se bem solidário com as reivindicações do movimento estudantil, não se comprometera com nenhuma organização estudantil, não se comprometera com nenhuma organização ou grupo político, nem sequer apoiava todas as posições de máximo, contando-se em admirá-lo e defendê-lo quando a direita atacava, acusando-o de inimigo de Deus, da Pátria e da Família.

Haviam saído juntos de acalorado debate sobre divórcio, virgindade, direitos da mulher, Máximo ainda exibia nos olhos um resto da exaltação com que defendera a igualdade dos sexos em todos os domínios humanos.

Rindo, em tom de pilhéria, para divertir-se Ascânio lhe perguntara:

- Me diga a verdade, mano velho. Se um dia você viesse a saber que Aparecida – Aparecida era a noiva de Máximo, colega de faculdade e de ideário político – não era virgem, tivera um caso antes, você assim mesmo casava com ela?

- Se casaria com ela, sabendo que não era virgem? É claro que sim. – Respondeu sem vacilar. Em seguida, porém, deixando cair os braços e a exaltação, honradamente confessou. – Para falar verdade, não sei. Nunca pensei no assunto em termos pessoais. Uma coisa é certa, Ascânio: o preconceito vive dentro da gente. Você pensa uma coisa, defende seu pensamento, ele é correcto,
você sabe disso, mas na hora de aplicá-lo… Casaria mas, antes, teria de esmagar o preconceito…

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