quarta-feira, maio 27, 2009


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 144





Dona Milú não ri, dá ordens:

- Boneca, automóvel, corneta, fogão e reco-reco só para os necessitados.

A fila está cheia de gente que não precisa, uma vergonha. Para esses, uma bola de ar ou um queimado, e olhe lá! Estão aqui porque os pais não têm brio na cara.

Para que não haja dúvidas exemplifica:

- Estás ouvindo, Dulcineia? Teus filhos estão na fila, como se a padaria não desse dinheiro. Teu irmão também, Georgina, um moleque grande daqueles. Só quero ver.

Apenas Leôncio destranca a porta e permite a entrada, a fila se desfaz, a meninada avança em bloco, mães e pais postam-se diante da mesa de mãos estendidas, empurram as cadeiras.

A poder de gritos e de alguns puxões de orelhas, padre Mariano contem a avalancha durante os minutos necessários à cerimónia da bênção. Ao terminar, ainda tenta cometer pequeno sermão mas desiste diante da gritaria e da balbúrdia que, de imediato, se estabelecem. Padre Mariano, Vavá Muriçoca e Ricardo são envolvidos pela leva de candidatos aos donativos da Brastânio.

Indiferente aos brindes mas amiga da confusão, dona Edna se aproveita e, em meia água benta e ao incenso, consegue ao mesmo tempo apertar a mão de Leléu em doce promessa e roçar a bunda na batina de Ricardo, façanha limitada, porém divertida e grata.

Torna-se impossível qualquer espécie de controlo, fracassam as tentativas de distribuir bonecas e fogões às meninas, automóveis e cornetas aos meninos, bolas de ar e caramelos aos filhos de gente endinheirada. Um tumulto, um motim: a comissão imprensada contra a parede, as cadeiras derrubadas, mãos maternas arrancando os brindes. A donzela Cinira tem uma tontura e desmaia, Elisa sai à procura de um copo de água. Falta de homem, diagnostica dona Milú desistindo de distribuir brindes para aplicar beliscões cascudos nos moleques mais ousados.

Desaparece rapidamente o monte de brinquedos. Os retardatários recebem tão-somente a estampa colorida com a efígie de Jesus e as frases da oferenda da Brastânio.

Na rua, estouram discussões entre mães e pais, duas mulheres do Buraco Fundo se agarram pelos cabelos, crianças se batem entre choros e xingos. Vencidas, arrasadas, desfeitos os penteados, amarrotados os vestidos, senhoras e moças da comissão de honra ameaçam chiliques. Dona Dulcineia retirou-se às pressas, após entregar aos filhos corneta, boneca, fogão e automóvel, levando ela própria reco-reco e língua de sogra, balas para o marido; para isso aceitou participar da comissão, dona Milú que vá pregar para outra freguesia.

Georgina afoga os soluços no lenço, o irmão a ameaçara: vou contar a papai que você não quis me dar nem o automóvel nem a corneta, sua burra.

Em meio à barulheira dessa algazarra festiva e rude, do intolerável som de vinte abjectas cornetas de lata, o vate Barbozinha, na tribuna do conselho, declama o poema composto especialmente para a ocasião, comovente, bíblico e louvaminheiro. Em vão Ascânio, Seixas, Leléu e outros rapazes reclamam silêncio.

Também Leonora e Elisa, duas formosuras raras, erguem as vozes e suplicam, por favor, um minuto de atenção. Do poema, ali nada ou pouco se pôde ouvir, para tristeza do bardo insigne que passara dois dias e duas noites escolhendo rimas, contando sílabas e buscando informações sobre dióxido de titânio.

- Me diga, mestre Ascânio, que diabo é isso?

O que fosse, exactamente, tão pouco Ascânio o sabia. Importante, importantíssimo produto, cuja fabricação vai significar grande economia de divisas ao país, passo fundamental para o desenvolvimento pátrio. Em que consiste, porém, disso não tem a mais mínima ideia, confessara um tanto encabulado.

Ascânio resolve adiar para melhor ocasião o discurso anunciando aos povos a nova era: os povos, em bulha e correria, se retiram com os brindes, desinteressados de poesia e oratória. Mulheres pobres com os filhos escanchados nas ancas, homens mal vestidos levando crianças pela mão, molecotes soltos pelas esquinas, rapidamente a multidão se desfaz. Largadas nos caminhos, atiradas fora, as estampas com a efígie de Jesus, a frase do Novo Testamento e o nome da Brastânio. Não possuem valor de compra e troca.

Tendo Bafo de Bode pedido um brinde ou um trago de cachaça a Leôncio, este lhe ofereceu uma estampa, único brinde a sobrar.

- Por que não oferece à senhora sua mãe? – perguntou o mendigo ofendido.

O capenga Leôncio considera a festa um sucesso sem exemplo e a Brastânio organização digna dos maiores elogios. Único a receber sacola íntegra – não uma, três e com antecedência, sem empurrões nem briga – ainda conseguira surripiar uma corneta que termina dando a Bafo de Bode para se ver livre dele.

Pequena corneta de lata, vagabunda mas barulhenta, Bafo de Bode desce a rua a soprá-la, produzindo um som incómodo, arrepiante, medonho. Com ele obtém o silêncio necessário para onde Terto irá pendurar os novos chifres se já não tem lugar no corpo que não esteja ocupado. Resta-lhe enfiá-los no cu, são chifres de menino, não doem. O que diz Bafo de Bode, podre de
bêbado, não se repete, muito menos se escreve.

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