TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 195
EPISÓDIO Nº 195
DE COMO DEUS ATENDE A UM PEDIDO SACRÍLEGO
Ainda bem que Deus veio em seu auxílio, o Deus dos namorados, actualmente o preferido de Ricardo, segundo tudo indica. E o fez de forma aparentemente violenta, a ponto de se poder considerar, em julgamento apressado, cruel e injusta a acção da divina Providência. Para logo constatar-se a precisa sabedoria da medida posta em prática. No caso, vale a pena repetir o refrão popular citado por dona Milú a propósito da expulsão de Tieta: Deus escreve certo por linhas tortas.
Reflectia o esforçado aprendiz de padre e de homem sobre a empreitada em que se metera, buscando maneira de resolvê-la, saindo airosamente da difícil encruzilhada, trilhando caminhos a conduzi-lo primeiro aos braços juvenis de Maria Imaculada, depois aos balzaquianos de Tieta. Não via jeito, beco sem saída.
Na noite passada, ao voltar dos fogos, acompanhando a mãe e Leonora, quando reinou silêncio na casa, transpusera o corredor e tocara o corpo nu da tia. Com os primeiros beijos, Tieta acordou e o prendeu nos braços, cingindo-lhe a cintura:
- Meu cabrito!
- Minha cabra!
Disse cabra com o pensamento na cabrita a pedir: me beije de novo, bem. A voz desfalecendo em dengue ao tratá-lo de bem, e ele se esvaindo ao ouvi-la pronunciar. Se pudesse contaria a Tieta: hoje te encontrei, tia, no tempo de antanho, molecota, de tocaia sob a mangueira, no escuro. Me perdoa mas preciso saber como era teu gosto de pastora, sem perfume francês, sem cremes nem unguentos, sem perucas, negligês, colares de ouro, anéis de brilhantes, quando cheiravas a jasmim-do-cabo e vestias organdi azul-celeste.
Naquela noite, rompendo com atraso o Ano-Novo, Ricardo conheceu o singular prazer de possuir uma mulher pensando noutra. Melhor ainda do que o ipicilone duplo, executado por Tieta com sua colaboração, quando a primeira claridade da manhã penetrou pela janela aberta. Foram três no leito de dona Eufrosina e do doutor Fulgêncio: ele, Tieta e Maria Imaculada.
Como fazer para ir ao encontro da menina quando, às nove da noite, a luz se apagar? Mesmo nas suares das visitas demoradas, não tinha pretexto para tocar-se rua fora, a mãe não fazia concessões em matéria de horários. Pensou em mil desculpas, inventou dezenas de razões, todas inconsistentes. O tempo passando e ele sem saber como agir. Disposto a inventar qualquer mentira, fosse qual fosse. Aliás já mentira à tia naquela manhãzinha, pois ela notara a marca da mordida e o interrogara. Mordera-se a ele próprio, ao cobri-la de beijos e dentadas na hora extrema do ipicilone duplo.
Por cúmulo do azar, para além do inevitável Ascânio, a rodear a praça com Leonora, e do vate Barbozinha, na varanda a mentir para Tieta e Perpétua, nenhuma outra visita aparecera. Ao soar das nove, Ascânio trará Leonora de volta; descerão a rua, juntos, ele e Barbozinha. Perpétua se recolherá para as orações nocturnas. Tendo acenado da porta o último adeus, Leonora beijará Tieta desejando-lhe boa noite. Então a tia, após a longa toalete – demora o tempo da irmã e da enteada se entregarem ao sono – deitar-se-ia para gozar a boa noite em companhia dele, Ricardo.
Espia o relógio, falta pouco mais de meia hora para as nove e ele nada inventa, capaz de lhe permitir a escapada. Uma angústia atroz o possui, daqui a pouco Maria Imaculada estará atrás do tronco da mangueira, a esperá-lo.
Largando a gramática da língua portuguesa em que se recolhera para melhor pensar, Ricardo eleva o pensamento a Deus numa súplica desesperada e ímpia:
Ajudai-me Senhor Deus nesse terrível transe!
Tiro e queda pois em seguida soam passos na calçada, ouve-se a voz do padre Mariano a chamá-lo pelo nome:
- Ricardo! Ó Ricardo! Já está dormindo?
Acorre Perpétua a receber o reverendo, querendo saber o motivo da visita e do apelo. Motivo triste, cara filha,: levar a extrema-unção à velha Belarmina, viúva de seu Cazuza Bezerra, paroquiana muito da Igreja, andando a passos firmes para os noventa. Acometida por um banal resfriado há poucos dias, piorara inesperadamente, tivera uma vertigem.
Ainda bem que Deus veio em seu auxílio, o Deus dos namorados, actualmente o preferido de Ricardo, segundo tudo indica. E o fez de forma aparentemente violenta, a ponto de se poder considerar, em julgamento apressado, cruel e injusta a acção da divina Providência. Para logo constatar-se a precisa sabedoria da medida posta em prática. No caso, vale a pena repetir o refrão popular citado por dona Milú a propósito da expulsão de Tieta: Deus escreve certo por linhas tortas.
Reflectia o esforçado aprendiz de padre e de homem sobre a empreitada em que se metera, buscando maneira de resolvê-la, saindo airosamente da difícil encruzilhada, trilhando caminhos a conduzi-lo primeiro aos braços juvenis de Maria Imaculada, depois aos balzaquianos de Tieta. Não via jeito, beco sem saída.
Na noite passada, ao voltar dos fogos, acompanhando a mãe e Leonora, quando reinou silêncio na casa, transpusera o corredor e tocara o corpo nu da tia. Com os primeiros beijos, Tieta acordou e o prendeu nos braços, cingindo-lhe a cintura:
- Meu cabrito!
- Minha cabra!
Disse cabra com o pensamento na cabrita a pedir: me beije de novo, bem. A voz desfalecendo em dengue ao tratá-lo de bem, e ele se esvaindo ao ouvi-la pronunciar. Se pudesse contaria a Tieta: hoje te encontrei, tia, no tempo de antanho, molecota, de tocaia sob a mangueira, no escuro. Me perdoa mas preciso saber como era teu gosto de pastora, sem perfume francês, sem cremes nem unguentos, sem perucas, negligês, colares de ouro, anéis de brilhantes, quando cheiravas a jasmim-do-cabo e vestias organdi azul-celeste.
Naquela noite, rompendo com atraso o Ano-Novo, Ricardo conheceu o singular prazer de possuir uma mulher pensando noutra. Melhor ainda do que o ipicilone duplo, executado por Tieta com sua colaboração, quando a primeira claridade da manhã penetrou pela janela aberta. Foram três no leito de dona Eufrosina e do doutor Fulgêncio: ele, Tieta e Maria Imaculada.
Como fazer para ir ao encontro da menina quando, às nove da noite, a luz se apagar? Mesmo nas suares das visitas demoradas, não tinha pretexto para tocar-se rua fora, a mãe não fazia concessões em matéria de horários. Pensou em mil desculpas, inventou dezenas de razões, todas inconsistentes. O tempo passando e ele sem saber como agir. Disposto a inventar qualquer mentira, fosse qual fosse. Aliás já mentira à tia naquela manhãzinha, pois ela notara a marca da mordida e o interrogara. Mordera-se a ele próprio, ao cobri-la de beijos e dentadas na hora extrema do ipicilone duplo.
Por cúmulo do azar, para além do inevitável Ascânio, a rodear a praça com Leonora, e do vate Barbozinha, na varanda a mentir para Tieta e Perpétua, nenhuma outra visita aparecera. Ao soar das nove, Ascânio trará Leonora de volta; descerão a rua, juntos, ele e Barbozinha. Perpétua se recolherá para as orações nocturnas. Tendo acenado da porta o último adeus, Leonora beijará Tieta desejando-lhe boa noite. Então a tia, após a longa toalete – demora o tempo da irmã e da enteada se entregarem ao sono – deitar-se-ia para gozar a boa noite em companhia dele, Ricardo.
Espia o relógio, falta pouco mais de meia hora para as nove e ele nada inventa, capaz de lhe permitir a escapada. Uma angústia atroz o possui, daqui a pouco Maria Imaculada estará atrás do tronco da mangueira, a esperá-lo.
Largando a gramática da língua portuguesa em que se recolhera para melhor pensar, Ricardo eleva o pensamento a Deus numa súplica desesperada e ímpia:
Ajudai-me Senhor Deus nesse terrível transe!
Tiro e queda pois em seguida soam passos na calçada, ouve-se a voz do padre Mariano a chamá-lo pelo nome:
- Ricardo! Ó Ricardo! Já está dormindo?
Acorre Perpétua a receber o reverendo, querendo saber o motivo da visita e do apelo. Motivo triste, cara filha,: levar a extrema-unção à velha Belarmina, viúva de seu Cazuza Bezerra, paroquiana muito da Igreja, andando a passos firmes para os noventa. Acometida por um banal resfriado há poucos dias, piorara inesperadamente, tivera uma vertigem.
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