quinta-feira, outubro 01, 2009


TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 248






ONDE O AUTOR SE DESMANDA EM INESPERADA LOUVAÇÃO – HÁ DE TER AS SUAS RAZÕES PARA FAZÊ-LA, COM CERTEZA.


Muito se tem falado acerca de patriotismo e de patriotas neste folhetim. No particular, torna-se indispensável reparar grave injustiça e devo corrigi-la com urgência antes de introduzir os leitores na animada e única pensão de mulheres da vida situada em Agreste, cuja direcção e propriedade Zuleika Cinderela assegura com delicadeza e eficiência.

Louvou-se com justiça o desprendimento do comandante Dário de Queluz, abandonando gloriosa carreira nos buques de guerra da Armada por amor às belezas, ao clima e à tranquilidade de Agreste. Cantaram-se loas aos poemas dedicados pelo aplaudido vate Gregório Eustáquio de Matos Barboza ao torrão natal, em cuja paisagem se inspirou; noticiou-se a importância para a cidade de seu retorno, abalado pela doença, portador de inestimável património: o sucesso, a fama, a recordação de amizades ilustres, os exemplares dos livros publicados. Traçaram-se amplas considerações em torno do apego de Ascânio Trindade ao município pobre e atrasado que ele deseja rico e progressista; morto o pai poderia ter retornado à faculdade e, após a formatura, desenvolver-se pelo Sul – não lhe faltam qualidades, reconhecidas, inclusivé, pelos directores da Brastânio. Foram lembrados nomes do passado, feitos e merecimentos.

Não se falou no entanto na dedicação, no devotamento incondicional a Sant’Ana do Agreste de Zuleika Rosa do Carmo, a Cinderela, à qual tanto devem a cidade e o município. Não somente seu nome deixou de figurar entre os dos patriotas comprovados, como sua presença nas inumeráveis páginas deste folhetim é raridade, quase sempre citação casual. Uma vez, foi vista na igreja, rodeada de raparigas, na noite de Ano-Novo; no bar os quatro amigos beberam à sua saúde, não o fazendo Astério por ausente e bem casado. Foi tudo. Injustiça das maiores, busco compensá-la.

Não houvesse ela permanecido em Agreste, desprezando ofertas diversas e vantajosas, não uma ou duas, muitas, o que seria da alegria desse perdido burgo? Que restaria aos jovens (e aos menos jovens) além das cabras? Algumas catraias asquerosas mendigando no Beco da Amargura, no Buraco Fundo, nos cantos perdidos.

Citei a pensão de Zuleika na relação dos centros culturais de Agreste. Por tê-lo feito, mereci áspera crítica de Fúlvio D’Alembert, rigoroso na literatura e na moralidade. Mas pergunto: onde tomam contacto com a civilização dos grandes centros e se educam os tabaréus vindos das plantações e sítios de Rocinha, aos sábados, para a feira? Onde encontrar, em permanência, perfume e graça, música e baile, namoro e galanteio, tertúlia, canto, recitativo um tango no rigor dos floreados, além da teoria e prática da sexualidade, ciência tão em voga nos tempos actuais?

Bem mais tristes e solitários seriam as noites e os dias de Agreste, sobretudo as noites, se Zuleika, tentada pela avidez do dinheiro, seduzida pelo fausto, houvesse partido em busca de fortuna e renome nacional, para o que contava com os atributos necessários, físicos e morais. O quotidiano de Agreste não se caracterizaria pela boa convivência, a discórdia não teria esperado pela Brastânio para estabelecer seu reino. Zuleika Cinderela distribui aprazimento e cordialidade entre o povo, sendo inclusivé responsável pela harmonia de vários casais – não fossem as raparigas a oficiar na pensão, muitos maridos teriam desertado do lar em busca de plagas mais evoluídas.

Desde cedo Zuleika recusou convites. De donas de pensão de Esplanada, Mata de São João, Caldas do Cipó, Dias D’Ávila, Feira de Santana, Itabuna, Aracajú e Salvador, todas oferecendo boas condições pois ela era uma tentação de garota, um azougue. Apelidaram-na de Cinderela por ter chegado da cozinha da fazenda Tapitanga, onde o coronel Artur exercera o direito de pernada antes dela completar catorze anos. Quando mulher feita, estabelecida com a pensão, não lhe faltaram tampouco lucrativas propostas para transferir a centros mais populosos e adiantados sua capacidade de empresária e administradora: poderia enriquecer.

Igual a Comandante, a Barbozinha, a Ascânio, revelou-se irredutível patriota. Jamais admitiu a ideia de deixar Agreste, sabendo-se não apenas querida mas indispensável. Não lhe cabia quase sempre a delicada tarefa de iniciar os meninos de boa família? Pais conscienciosos, atentos à educação dos filhos varões, depositavam nas mãos de Zuleika Cinderela o futuro dos herdeiros, colocando-os aos seus cuidados, por vias travessas de parentes e amigos suplicando-lhe ocupar-se deles, fazendo-os homens íntegros e inteiros. Por bondade e apetite, iniciava também alguns moleques, de graça. Pequena de estatura, grande de alma.

Quando, aos onze anos de idade, levado por um primo, Osnar a procurou, ela cumprira vinte e já conquistara fama de especialista na matéria. Hoje, tendo atravessado com garbo a casa dos cinquenta, se contasse os cabaços que desfolhou no curso da existência, proclamaria um recorde. Não ostenta mais o viço de mocinha, a turbulência juvenil; fez-se pousada, mas a desenvoltura é a mesma, maior é a gentileza e conserva aquele primor de corpo bem feito, a sensualidade irresistível, as marcas da bexiga esvanecendo-se no rosto sempre em festa.

Houvesse justiça no mundo, não estivessem os cidadãos de Agreste amarrados à hipocrisia dos preconceitos, Zuleika e seu modelar estabelecimento teriam sido há muito proclamados de utilidade pública. Mas a vida é um repositório de injustiças – repita-se aqui esta verdade, juntando mais um lugar comum aos tantos outros que se acumulam nas deslustradas páginas deste folhetim


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