segunda-feira, outubro 19, 2009


TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 263



A RIVAL DE DEUS


A ausência de Ricardo doía-lhe no corpo inteiro, da ponta dos pés à ponta dos encaracolados cabelos, em cada músculo, por dentro e por fora. Vazia e necessitada, sem jeito.

Pensara que jamais voltaria a sentir ânsia tamanha, desejo a roer as carnes, aflição a esmagar o peito. Sucedera uma vez, muitos anos antes, quando Lucas partira, fugindo de Agreste, sem deixar aviso ou endereço. Ao chegar, esfusiante, para a festa no leito de dona Eufrosina e do finado doutor Fulgêncio, na cálida maciez do colchão de lã de barriguda, deparara com a janela do quarto fechada sobre o beco e a paixão de adolescente deslumbrada e ávida.

Derrotada, perdida, demorara a espiar por entre as frestas da veneziana, buscando a sombra de um vulto, o ouvido encostado às tábuas, tentando perceber uma respiração. Quantas horas permanecera ali parada na noite morna, junto à janela, antes de arrastar-se enferma para a primeira solidão? Roída de desejo, querendo tê-lo e não podendo. Não voltara a suceder. Dali em diante fora sempre ela a não comparecer, a faltar ao encontro, a ausentar-se, a trancar janelas e porta. As portas do corpo e do coração.

Branco lençol de cambraia, colchão de barriguda encomendado em Estância, largo estrado propício aos embates extremos, cheiro de tinta fresca, tudo novo em folha para e festa da inauguração. Tieta velou, insone, na noite longa de não acabar, ouvindo a ventania sobre os cômoros e a arrebentação das vagas, outra vez sozinha e sem jeito, querendo ter e não podendo. No gozo de orações, cerimónias, afazeres de sacristia, Ricardo a esquece e abandona. Amante de tempo dividido, de coração dividido entre ela e Deus.

Não imaginou Ricardo dormindo com outra mulher, nada sabia de Maria Imaculada, acreditara piamente na desculpa rabiscada no bilhete entregue por dona Carmosina, no inventário dos bens da paróquia. As mulheres rondavam o seminarista, é certo, ela se dera conta. Despudorada, dona Edna não se preocupa sequer em esconder o jogo, ninfomaníaca, puta reles! Em se tratando de cama, porém, Tieta sente-se segura.

Homem algum, por mais inconstante ou mulherengo, a deixara por outra. Lucas fora o único a tomar a iniciativa de romper. Aos demais, sem excepção, ela abandonara apenas aos primeiros sintomas de cansaço, evitando o cortejo de brigas, rogos, acusações, mentiras e tristezas dos fins de romance. Ia-se embora abruptamente, apenas comprovava a sensação de fastio, Para conservar íntegra a recordação da aventura, para ter saudades, quanto mais melhor. Paixões, rabichos, chamegos, xodós, rápidos ou prolongados, românticos ou lascivos, não passam, todos eles, de perecíveis aventuras, o que não os impede de ser cada um deles, em certo momento, o amor exclusivo, único, definitivo e imortal.

Ricardo é o amor único e exclusivo, definitivo e imortal, nunca teve outro, nem terá. Precisa dele ali, naquele instante, imediatamente e sem falta. O desejo roendo as carnes, o orgulho machucado. Nem por considerar fora de cogitação, por impossível, qualquer enredo de cama, nem por isso Tieta se sente menos ofendida e abandonada. Vazia e necessitada, atravessou a noite mais longa da sua vida, aquela que deveria ter sido a mais alegre e plena.

Quando, por fim, adormeceu, teve um pesadelo atroz. Sob o céu negro, no mar podre, cemitério de peixes e caranguejos, boiavam destroços do Curral do Bode Inácio e das choupanas dos pescadores. Na extinta linha do horizonte, vislumbrou Ricardo, glorioso arcanjo, e lhe estendeu os braços, tentando escapar da morte. Indiferente, ele se afastou na esteira de Deus, deixando-a debater-se, condenada. Onde existira antes o esplendor paradisíaco da praia de Mangue Seco,
crescera uma paisagem paulista de fábricas, cortiços de concreto, ferro e aço, fumaça e morte.

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