DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS
Era domingo de Carnaval, quem não tinha naquela noite corso de automóveis a fazer, festa onde divertir-se, programa para a madrugada? Pois bem: com tudo isso o velório de Vadinho foi um sucesso. “Um autêntico sucesso” como orgulhosamente constatou e proclamou dona Norma.
Os homens do rabecão largaram o corpo em cima da cama, no quarto de dormir, só depois os vizinhos o transportaram para a sala. Os tipos do necrotério estavam apressados, seu trabalho aumentava com o Carnaval. Enquanto os demais se divertiam, eles lidavam com defuntos, com as vítimas de desastres e de brigas. Arrancaram o lençol imundo a embrulhar o cadáver, entregaram o laudo à viúva.
Vadinho ficou nu como Deus o pôs no mundo, em cima da cama de casal, uma cama de ferro com cabeceira e pé trabalhados, comprada em segunda mão por dona Flor, num leilão de móveis, quando do casamento, seis anos antes.
Dona Flor, sozinha no quarto, abriu o envelope, estudou o parecer dos médicos. Balançou a cabeça incrédula. Quem diria? Aparentemente tão forte e são, tão moço ainda!
Gabava-se Vadinho de jamais ter estado doente e de atravessar oito noites e oito dias sem dormir, jogando e bebendo ou na farra com mulheres. E por vezes não passava realmente oito dias sem aparecer em casa, deixando dona Flor em desespero, como maluca? No entanto ali estava o laudo dos doutores da Faculdade: era um homem condenado, fígado imprestável, rins estrompados, coração aos pandarecos. Podia morrer a qualquer momento, como morrera. Assim, de repente. A cachaça, as noites nos casinos, a esbórnia, a correria doida à cata de dinheiro para o jogo haviam arruinado aquele organismo belo e forte, deixando-lhe apenas a aparência. Sim, porque olhando-o apenas pelo lado de fora, quem o julgaria tão implacavelmente liquidado?
Dona Flor contemplou o corpo do marido antes de chamar os prestimosos e impacientes vizinhos para a delicada tarefa de vesti-lo. Lá estava ele, nu como gostava de ficar na cama, uma penugem dourada a cobrir-lhe braços e pernas, mata de pêlos loiros no peito, a cicatriz da navalhada no ombro esquerdo. Tão belo e másculo, tão sábio no prazer! Mais uma vez as lágrimas assomaram ao rosto da jovem viúva. Tentou não pensar no que estava pensando, não era coisa para dia de velório.
Ao vê-lo assim, porém, largado sobre o leito, inteiramente nu, não podia dona Flor, por mais esforço que fizesse, deixar de recordá-lo como era na hora do desejo desatado: Vadinho não tolerava peça de roupa sobre os corpos, nem pudibundo lençol a cobri-los, o pudor não era o seu forte. Quando a chamava para a cama, dizia-lhe: “vamos vadiar, minha filha”; era o amor, para ele, como uma festa de infinita alegria, à qual se entregava com aquele seu reconhecido entusiasmo aliado a uma competência proclamada por múltiplas mulheres, de diferente condição e classe. Nos primeiros tempos do casamento dona Flor ficava toda encabuladas e sem jeito, pois ela a exigia nuinha por inteiro:
- Onde já se viu vadiar de camisola? Por que tu te esconde? A vadiação é coisa santa, foi inventada por Deus no paraíso, tu não sabe?
Não só a despia toda, como, achando pouco, tocava e brincava com os detalhes do seu corpo de curvas largas e reentrâncias profundas onde cruzavam-se sombra e luz num jogo de mistérios. Dona Flor tentava cobrir-se, Vadinho arrancava o lençol entre risos, expunha-lhe os seios rijos, a formosa bunda, o ventre quase despido de pêlos. Tomava dela como de um brinquedo, um brinquedo ou um fechado botão de rosa que ele fazia desabrochar em cada noite de prazer. Doa Flor ia perdendo a timidez, entregando-se àquela festa lasciva, crescendo em violência, tornando-se amante animosa e audaz. Nunca, porém, abandonou por completo a pudicícia e a vergonha; era necessário reconquistá-la cada vez, pois, apenas desperta dessas loucas audácias e dos ais de desmaio, voltava a ser tímida e pudorosa esposa.
Naquela hora, a sós com a morte de Vadinho, deu-se conta dona Flor, então e completamente, de sua viuvez, que nunca mais o teria, nem em seus braços voltaria a desmaiar. Porque desde o momento do trágico boato transmitido de boca em boca, até à chegada do rabecão, no fim da tarde, vivera a professora de culinária uma espécie de sonho mau e ao mesmo tempo um tanto excitante: o impacto da notícia, a caminhada em prantos até ao Largo Dois de Julho, o encontro com o corpo, a multidão a rodeá-la, a cuidar dela, a oferecer-lhe solidariedade e conforto, a volta para casa quase carregada por dona Norma e dona Gisa, pelo professor Epaminondas e por Mendez, o espanhol do botequim. Tudo tão rápido e confuso, não lhe deixara tempo para pensar e realizar por completo a morte de Vadinho.
EPISÓDIO Nº 5
Era domingo de Carnaval, quem não tinha naquela noite corso de automóveis a fazer, festa onde divertir-se, programa para a madrugada? Pois bem: com tudo isso o velório de Vadinho foi um sucesso. “Um autêntico sucesso” como orgulhosamente constatou e proclamou dona Norma.
Os homens do rabecão largaram o corpo em cima da cama, no quarto de dormir, só depois os vizinhos o transportaram para a sala. Os tipos do necrotério estavam apressados, seu trabalho aumentava com o Carnaval. Enquanto os demais se divertiam, eles lidavam com defuntos, com as vítimas de desastres e de brigas. Arrancaram o lençol imundo a embrulhar o cadáver, entregaram o laudo à viúva.
Vadinho ficou nu como Deus o pôs no mundo, em cima da cama de casal, uma cama de ferro com cabeceira e pé trabalhados, comprada em segunda mão por dona Flor, num leilão de móveis, quando do casamento, seis anos antes.
Dona Flor, sozinha no quarto, abriu o envelope, estudou o parecer dos médicos. Balançou a cabeça incrédula. Quem diria? Aparentemente tão forte e são, tão moço ainda!
Gabava-se Vadinho de jamais ter estado doente e de atravessar oito noites e oito dias sem dormir, jogando e bebendo ou na farra com mulheres. E por vezes não passava realmente oito dias sem aparecer em casa, deixando dona Flor em desespero, como maluca? No entanto ali estava o laudo dos doutores da Faculdade: era um homem condenado, fígado imprestável, rins estrompados, coração aos pandarecos. Podia morrer a qualquer momento, como morrera. Assim, de repente. A cachaça, as noites nos casinos, a esbórnia, a correria doida à cata de dinheiro para o jogo haviam arruinado aquele organismo belo e forte, deixando-lhe apenas a aparência. Sim, porque olhando-o apenas pelo lado de fora, quem o julgaria tão implacavelmente liquidado?
Dona Flor contemplou o corpo do marido antes de chamar os prestimosos e impacientes vizinhos para a delicada tarefa de vesti-lo. Lá estava ele, nu como gostava de ficar na cama, uma penugem dourada a cobrir-lhe braços e pernas, mata de pêlos loiros no peito, a cicatriz da navalhada no ombro esquerdo. Tão belo e másculo, tão sábio no prazer! Mais uma vez as lágrimas assomaram ao rosto da jovem viúva. Tentou não pensar no que estava pensando, não era coisa para dia de velório.
Ao vê-lo assim, porém, largado sobre o leito, inteiramente nu, não podia dona Flor, por mais esforço que fizesse, deixar de recordá-lo como era na hora do desejo desatado: Vadinho não tolerava peça de roupa sobre os corpos, nem pudibundo lençol a cobri-los, o pudor não era o seu forte. Quando a chamava para a cama, dizia-lhe: “vamos vadiar, minha filha”; era o amor, para ele, como uma festa de infinita alegria, à qual se entregava com aquele seu reconhecido entusiasmo aliado a uma competência proclamada por múltiplas mulheres, de diferente condição e classe. Nos primeiros tempos do casamento dona Flor ficava toda encabuladas e sem jeito, pois ela a exigia nuinha por inteiro:
- Onde já se viu vadiar de camisola? Por que tu te esconde? A vadiação é coisa santa, foi inventada por Deus no paraíso, tu não sabe?
Não só a despia toda, como, achando pouco, tocava e brincava com os detalhes do seu corpo de curvas largas e reentrâncias profundas onde cruzavam-se sombra e luz num jogo de mistérios. Dona Flor tentava cobrir-se, Vadinho arrancava o lençol entre risos, expunha-lhe os seios rijos, a formosa bunda, o ventre quase despido de pêlos. Tomava dela como de um brinquedo, um brinquedo ou um fechado botão de rosa que ele fazia desabrochar em cada noite de prazer. Doa Flor ia perdendo a timidez, entregando-se àquela festa lasciva, crescendo em violência, tornando-se amante animosa e audaz. Nunca, porém, abandonou por completo a pudicícia e a vergonha; era necessário reconquistá-la cada vez, pois, apenas desperta dessas loucas audácias e dos ais de desmaio, voltava a ser tímida e pudorosa esposa.
Naquela hora, a sós com a morte de Vadinho, deu-se conta dona Flor, então e completamente, de sua viuvez, que nunca mais o teria, nem em seus braços voltaria a desmaiar. Porque desde o momento do trágico boato transmitido de boca em boca, até à chegada do rabecão, no fim da tarde, vivera a professora de culinária uma espécie de sonho mau e ao mesmo tempo um tanto excitante: o impacto da notícia, a caminhada em prantos até ao Largo Dois de Julho, o encontro com o corpo, a multidão a rodeá-la, a cuidar dela, a oferecer-lhe solidariedade e conforto, a volta para casa quase carregada por dona Norma e dona Gisa, pelo professor Epaminondas e por Mendez, o espanhol do botequim. Tudo tão rápido e confuso, não lhe deixara tempo para pensar e realizar por completo a morte de Vadinho.
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