TIETA DO
AGRESTE
DE FACTOS E RUMORES. CAPÍTULO ONDE O ÁRABE CHALITA EXPRIME VAGA ESPERANÇA
Os dez dias que abalaram Agreste, definia Aminthas, leitor de autores proibidos, parafraseando John Reed, ao se referir àquele breve e tumultuado período. Ele próprio concorrera para o clima de grotesco pesadelo: manobrando impossíveis cordões, esteve por detrás de algumas graves ocorrências. Se bem a responsabilidade maior fosse normalmente atribuída a dona Carmosina.
- Veja só o que você arranjou, Carmosina – acusa o colector Edmundo Ribeiro, tomando assento numa cadeira, na agência dos Correios – Todo dia uma novidade, uma briga, um escândalo, um bafafá…
- Quando não são dois ou três. Agente ainda não acabou de comentar uma encrenca, começa outra. Cada prato de dar gosto… - apoia o árabe Chalita, sentado no batente da porta.
– Todo o mundo perdeu a cabeça, só quero ver como isto vai terminar.
Dona Carmosina abre mão de qualquer responsabilidade:
- Eu? Quem sou eu? Pelo jeito vão terminar me acusando ter inventado a fábrica de dióxido de titânio. A gente estava aqui, bem no seu, em paz.
- Se você não vivesse lendo e espalhando notícias de jornal… - o colector aponta o jornal mural, agora cobrindo a parede principal da sala.
- … vocês podiam vender Agreste impunemente…
O tom e a linguagem dos diálogos mudaram. Desapareceram a cordialidade, o bom humor, os ritos de gentileza a fazerem da conversação – divertimento principal da comunidade, gratuito, ao alcance de todos – um requintado prazer. O acento tornou-se áspero, a injúria substituindo a malícia.
- Alto lá! – exclama Edmundo Ribeiro – Não estou vendendo nada.
- Porque não conseguiu meter o dente no coqueiral, não por falta de vontade. Mas vive apoiando essa corja de venais. Ou pensa que não sabemos?
- Sabem o quê?
- Que assinou na lista de contribuições para a candidatura de Brastânio Trindade…
- Brastânio Trindade! Essa é boa… – ri o árabe. Nada se compara a uma prosa com pessoas inteligentes como dona Carmosina, a danada tem cada saída… - Por falar nisso, o que é que ele foi fazer em Esplanada?
- Ascânio viajou? – Dona Carmosina interessa-se, preocupada:
- Quando?
- Hoje. Me disse que volta amanhã.
A marinete de Jairo faz ponto em frente ao cinema, ao lado da casa de Chalita, presença infalível na partida (horário rígido) e na chegada (horário imprevisível) do veículo, controlando os viajantes.
- Que espécie de maroteira terá ido tramar? Disse que regressa amanhã? Então só dá tempo para ir até Esplanada, não dá tempo para ir a Salvador. Ele anda desnorteado. Pensou que a eleição ia ser barbada, ficou de crista murcha com o comício.
- Pois eu acho que ele ainda se elege – considera o colector – Não nego o prestígio do Comandante, mas, sabe como são as coisas… Ascânio já está na Prefeitura e, mais importante de tudo, é homem do coronel Artur… Porque prestígio mesmo, quem tem é o Coronel.
- Foi homem do Coronel, não é mais. Quem não sabe que o Coronel se desligou da candidatura do doutor Dióxido?
- Doutor Dióxido, essa é demais… - contorce-se Chalita.
- Me diga uma coisa, seu Edmundo: foi por generosidade que Modesto abriu a tal lista de contribuições, essa que o senhor assinou? Ou foi depois que o candidato de vocês voltou de Tapitanga, com o rabo entre as pernas e as mãos a abanar? Sabe o que o coronel respondeu quando ele pediu dinheiro para a campanha? Que recorresse à Brastânio. Não me venha dizer que não soube.
- Soube, sim, Carmosina. Mas actualmente se fala tanta coisa, a gente não pode sair acreditando assim sem mais nem menos.
É bem capaz que o Coronel tenha negado ajuda a Ascânio, o velho está broco, cada vez mais canguinha. Mas também é verdade que não disse a ninguém para não votar em Ascânio.
Estou mentindo? Se estou, me desminta.
- Aos que têm ido lá saber, o Coronel Artur diz que cada um vote em quem quiser, de acordo com a sua consciência. De broco, ele não tem nada e não foi por avareza que não atendeu ao pedido de dinheiro. Eu lhe digo mais: o Coronel só não sai apoiando de frente a candidatura do Comandante porque tem pena do afilhado. Mas pergunte a Vadeco Rosa o que foi que ouviu na Tapitanga e não esqueça que Vadeco é vereador e tem um bocado de votos em Rocinha. Ele mesmo me contou. Foi pedir instruções, o Coronel lhe disse para apoiar quem quisesse e bem entendesse, não tinha ordens a dar nem candidato a Prefeito, estava retirado da política.
- Ainda assim, o pessoal de Rocinha come pela mão de Ascânio, a começar por Vadeco.
- Comia, a coisa está mudando. Depois de conversar com Tieta, Vadeco ficou muito abalado. Em Rocinha, estavam pensando que Ascânio, depois de eleito, ia comprar as terras do município a peso de ouro. Quando viram que ele só pretende desapropriar os terrenos do coqueiral, ficaram danados.
O senhor sabe que Tieta está indo de casa em casa? Para a semana, vamos fazer um comício em Rocinha, ela vai falar.
- Não tem dúvida… - reconhece o coletor – Dona Antonieta é um grande trunfo, é só quem faz medo. O Comandante, a gente vê, saiu a candidato a contra gosto, por imposição, e eu sei de quem…
- Minha, com certeza, não é? Fique sabendo que a acusação me honra muito.
- Coitado, é ter uma folga, se toca para Mangue Seco. Agora mesmo está na praia, não está?
- Para assegurar os votos do pessoal de lá. Mas volta logo.
- Pelos votos de Mangue Seco? Não chegam a uma dúzia… mas Tieta, essa pode desequilibrar a balança, se ficar até ao fim…engraçado: apesar de combater a candidatura de Ascânio, parece que ela não se opõe ao namoro dele com a enteada. Aliás, Carmosina, em matéria de namoro, esse é de se tirar o chapéu…
Dona Carmosina evita o assunto, a vida particular de Ascânio não está em discussão, Leonora é um amor de criatura. Mas já que o coletor desviou a conversa dos temas políticos para outros, mais amenos, ela gostaria de saber…
- O que, Carmosina…
- Se é verdade o que andam dizendo por aí…Que Modesto Pires admitiu um sócio…
- No curtume?
- Não, seu Edmundo. Na cama de Carol.
Quem responde é o árabe Chalita, alisando com gosto os bigodes:
- Um só, não. Eu soube de pelo menos dois – Um clarão perpassa-lhe nos olhos gulosos – Estou esperando que se transforme em sociedade anónima… Para comprar uma acçãozinha.
AGRESTE
EPISÓDIO Nº 298
DE FACTOS E RUMORES. CAPÍTULO ONDE O ÁRABE CHALITA EXPRIME VAGA ESPERANÇA
Os dez dias que abalaram Agreste, definia Aminthas, leitor de autores proibidos, parafraseando John Reed, ao se referir àquele breve e tumultuado período. Ele próprio concorrera para o clima de grotesco pesadelo: manobrando impossíveis cordões, esteve por detrás de algumas graves ocorrências. Se bem a responsabilidade maior fosse normalmente atribuída a dona Carmosina.
- Veja só o que você arranjou, Carmosina – acusa o colector Edmundo Ribeiro, tomando assento numa cadeira, na agência dos Correios – Todo dia uma novidade, uma briga, um escândalo, um bafafá…
- Quando não são dois ou três. Agente ainda não acabou de comentar uma encrenca, começa outra. Cada prato de dar gosto… - apoia o árabe Chalita, sentado no batente da porta.
– Todo o mundo perdeu a cabeça, só quero ver como isto vai terminar.
Dona Carmosina abre mão de qualquer responsabilidade:
- Eu? Quem sou eu? Pelo jeito vão terminar me acusando ter inventado a fábrica de dióxido de titânio. A gente estava aqui, bem no seu, em paz.
- Se você não vivesse lendo e espalhando notícias de jornal… - o colector aponta o jornal mural, agora cobrindo a parede principal da sala.
- … vocês podiam vender Agreste impunemente…
O tom e a linguagem dos diálogos mudaram. Desapareceram a cordialidade, o bom humor, os ritos de gentileza a fazerem da conversação – divertimento principal da comunidade, gratuito, ao alcance de todos – um requintado prazer. O acento tornou-se áspero, a injúria substituindo a malícia.
- Alto lá! – exclama Edmundo Ribeiro – Não estou vendendo nada.
- Porque não conseguiu meter o dente no coqueiral, não por falta de vontade. Mas vive apoiando essa corja de venais. Ou pensa que não sabemos?
- Sabem o quê?
- Que assinou na lista de contribuições para a candidatura de Brastânio Trindade…
- Brastânio Trindade! Essa é boa… – ri o árabe. Nada se compara a uma prosa com pessoas inteligentes como dona Carmosina, a danada tem cada saída… - Por falar nisso, o que é que ele foi fazer em Esplanada?
- Ascânio viajou? – Dona Carmosina interessa-se, preocupada:
- Quando?
- Hoje. Me disse que volta amanhã.
A marinete de Jairo faz ponto em frente ao cinema, ao lado da casa de Chalita, presença infalível na partida (horário rígido) e na chegada (horário imprevisível) do veículo, controlando os viajantes.
- Que espécie de maroteira terá ido tramar? Disse que regressa amanhã? Então só dá tempo para ir até Esplanada, não dá tempo para ir a Salvador. Ele anda desnorteado. Pensou que a eleição ia ser barbada, ficou de crista murcha com o comício.
- Pois eu acho que ele ainda se elege – considera o colector – Não nego o prestígio do Comandante, mas, sabe como são as coisas… Ascânio já está na Prefeitura e, mais importante de tudo, é homem do coronel Artur… Porque prestígio mesmo, quem tem é o Coronel.
- Foi homem do Coronel, não é mais. Quem não sabe que o Coronel se desligou da candidatura do doutor Dióxido?
- Doutor Dióxido, essa é demais… - contorce-se Chalita.
- Me diga uma coisa, seu Edmundo: foi por generosidade que Modesto abriu a tal lista de contribuições, essa que o senhor assinou? Ou foi depois que o candidato de vocês voltou de Tapitanga, com o rabo entre as pernas e as mãos a abanar? Sabe o que o coronel respondeu quando ele pediu dinheiro para a campanha? Que recorresse à Brastânio. Não me venha dizer que não soube.
- Soube, sim, Carmosina. Mas actualmente se fala tanta coisa, a gente não pode sair acreditando assim sem mais nem menos.
É bem capaz que o Coronel tenha negado ajuda a Ascânio, o velho está broco, cada vez mais canguinha. Mas também é verdade que não disse a ninguém para não votar em Ascânio.
Estou mentindo? Se estou, me desminta.
- Aos que têm ido lá saber, o Coronel Artur diz que cada um vote em quem quiser, de acordo com a sua consciência. De broco, ele não tem nada e não foi por avareza que não atendeu ao pedido de dinheiro. Eu lhe digo mais: o Coronel só não sai apoiando de frente a candidatura do Comandante porque tem pena do afilhado. Mas pergunte a Vadeco Rosa o que foi que ouviu na Tapitanga e não esqueça que Vadeco é vereador e tem um bocado de votos em Rocinha. Ele mesmo me contou. Foi pedir instruções, o Coronel lhe disse para apoiar quem quisesse e bem entendesse, não tinha ordens a dar nem candidato a Prefeito, estava retirado da política.
- Ainda assim, o pessoal de Rocinha come pela mão de Ascânio, a começar por Vadeco.
- Comia, a coisa está mudando. Depois de conversar com Tieta, Vadeco ficou muito abalado. Em Rocinha, estavam pensando que Ascânio, depois de eleito, ia comprar as terras do município a peso de ouro. Quando viram que ele só pretende desapropriar os terrenos do coqueiral, ficaram danados.
O senhor sabe que Tieta está indo de casa em casa? Para a semana, vamos fazer um comício em Rocinha, ela vai falar.
- Não tem dúvida… - reconhece o coletor – Dona Antonieta é um grande trunfo, é só quem faz medo. O Comandante, a gente vê, saiu a candidato a contra gosto, por imposição, e eu sei de quem…
- Minha, com certeza, não é? Fique sabendo que a acusação me honra muito.
- Coitado, é ter uma folga, se toca para Mangue Seco. Agora mesmo está na praia, não está?
- Para assegurar os votos do pessoal de lá. Mas volta logo.
- Pelos votos de Mangue Seco? Não chegam a uma dúzia… mas Tieta, essa pode desequilibrar a balança, se ficar até ao fim…engraçado: apesar de combater a candidatura de Ascânio, parece que ela não se opõe ao namoro dele com a enteada. Aliás, Carmosina, em matéria de namoro, esse é de se tirar o chapéu…
Dona Carmosina evita o assunto, a vida particular de Ascânio não está em discussão, Leonora é um amor de criatura. Mas já que o coletor desviou a conversa dos temas políticos para outros, mais amenos, ela gostaria de saber…
- O que, Carmosina…
- Se é verdade o que andam dizendo por aí…Que Modesto Pires admitiu um sócio…
- No curtume?
- Não, seu Edmundo. Na cama de Carol.
Quem responde é o árabe Chalita, alisando com gosto os bigodes:
- Um só, não. Eu soube de pelo menos dois – Um clarão perpassa-lhe nos olhos gulosos – Estou esperando que se transforme em sociedade anónima… Para comprar uma acçãozinha.
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