quinta-feira, dezembro 10, 2009


TIETA DO
AGRESTE


EPISÓDIO Nº 301


ONDE REAPARECE O AUTOR QUANDO JÁ NOS IMAGINÁVAMOS LIVRES DESSE CHATO


Era minha intenção não interromper a narrativa quando chegamos ao epílogo deste monumental folhetim (monumental, sim, basta atentar-se no número de páginas). Sendo neutro na contenda travada em Agreste, desejava manter-me à margem, simples espectador. Mas vejo-me obrigado a abandonar meu propósito, para mais uma vez defender-me de críticas assacadas contra a forma e o conteúdo do meu trabalho por Flúvio D’Alembert, fraterno e acerbo. Chego a supor que sentimento menos digno, qual seja a inveja, dita-lhe as restrições, ao constatar que me aproximo do fim deste cometimento literário. Nunca acreditou que eu conseguisse realizá-lo.

Não penso responder a uma quantidade de reproches menores, de ordem gramatical ou estilística, para não alongar minha intervenção. Desses, para exemplo, citarei apenas um. D’Alembert critica asperamente a forma como empreguei o verbo “contemplar”. Subindo em companhia de Cinira, a escada que leva à torre da igreja, Ricardo vai, “ela na frente ele atrás a contemplar”.

Contemplar, ensina-me Fúlvio, é verbo transitivo, exige objecto directo: quem contempla, contempla alguma coisa. Segundo ele, escondi dos leitores o alvo da jubilosa contemplação do seminarista.

Defendo-me, perguntando se os leitores precisam realmente de objecto directo para se darem conta da paisagem contemplada pelo jovem, se outra não existia na estreita e sombria escada além das coxas e dos quadris da donzelona?

Além de tudo, tais detalhes da anatomia da beata, se bem excitassem o adolescente, não são de qualidade a merecer o interesse dos leitores.

Acusação mais séria refere-se ao atropelo final da narrativa. Antes, as acções sucediam-se, poucas e lentas, espalhando-se em folhas e folhas de papel, numa falta de pressa, num despropósito de detalhes, em contínua repetição de minúcias, gritante ausência de economia literária, durante cinco longos episódios de enfadonha leitura. Abruptamente, no epílogo, modifica-se o ritmo, rompe-se a medida do tempo e do espaço ficcionais, perdendo-se a unidade da narrativa.

Na opinião de Fúlvio, o autor tomou-se de tal pressa a ponto de deixar os leitores na ignorância de factos do maior interesse, reduzidos a simples referência casual. Cita o comício da Praça da Matriz e a questão dos sócios de Modesto Pires nos afagos a Carol. Sabe-se de Ricardo, quais os outros?

Não sou culpado pela mudança do ritmo da narrativa, se ela existe. Os acontecimentos é que se precipitaram e atropelaram à minha revelia. Tantos em tão pouco tempo, para acompanhá-los vou deixando de lado aqueles que não me parecem fundamentais, mesmo se aparatosos ou divertidos.

É o caso do comício. Realizando-se no dia seguinte ao do conflito na feira, atraiu imenso público. O vate Barbozinha foi o primeiro a ocupar a tribuna, ou seja, a frente do palanque da Praça e a elevar a voz, não havendo microfone e alto – falante, os oradores usam a força dos pulmões. O bardo possui seus incondicionais, sobretudo entre as solteironas – adoram vê-lo recitar poemas de amor, o braço estendido, os olhos entornados para o céu, trémulos na voz ao pronunciar as rimas, desafiando as emoções românticas e sensuais de amores eternos e perjuros. As musas inspiradoras de Barbozinho tinham sido, em grande maioria, raparigas dos castelos de salvador, xodós dos tempos de boémia. Nos Poemas de Maldição, porém, como ele próprio explicou, vibrara as costas do civismo e da indignação em lira patriótica e acusadora. Obteve aplausos mas, no final, as fanáticas exigiram, aos gritos, a declamação de uns versos famosos, dezenas de vezes recitados nas festas locais: a Balada do Triste Trovador. Não fosse a enérgica oposição de dona Carmosina – isso aqui é um comício político, homem! – o poeta estaria até agora no palanque a dizer a Elegia Obscura da rua de São Miguel, o Poema para os Lábios de Luciana, o Soneto Escrito nos Seios de Isadora e outras peças de resistência.

Mitingueira estreante, dona Carmosina saiu-se bem. Seguidamente aparteada por Ascânio levara vantagem no debate, língua solta e atrevida. A única interrupção a perturbá-la – por pouco não perde rebolado – teve mais de comentário que de aparte e não proveio de Ascânio. Partiu de Bafo de Bode, tão bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ao ouvir dona Carmosina declarar que falava “em nome das mães de família preocupadas com o futuro dos filhos e maridos” o mendigo protestou:

- Ah! Essa não… Solteirona encruada não pode falar em nome de mulher casada, não tem competência de boceta!

O protesto arrancara risos da assistência, composta em boa parte por ouvintes mais interessados na troca de acusações e injúrias do que nos graves assuntos em debate, dados sobre o problema da poluição e o grau de perigosidade dos efluente do dióxido de titânio, manejados com evidente competência por dona Carmosina. Nem por ela me parecer chegada a chicanas e maquiavelismos,
lhe negarei capacidade e ousadia.

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