quinta-feira, janeiro 07, 2010


DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS

EPISÓDIO Nº13


Não, não se transformaria certamente, com o passar do tempo, em indecifrável mistério das letras, em mais um obscuro enigma da cultura universal, desafiando, séculos depois, universidades e sábios, estudiosos e biógrafos, filósofos e críticos, e convertendo-se em matéria de pesquisas, comunicações, teses a ocupar bolsistas, institutos, catedráticos, historiadores e velhacos variados em busca de existência fácil e regalada.

Não seria um novo caso Shakespeare, não passaria de dúvida tão insignificante quanto o pequeno acontecimento a servir-lhe de tema e inspiração: a morte de Vadinho.

Nos meios literários de Salvador, no entanto, elevou-se a interrogação e em torno dela nasceu a polémica: qual dos poetas da cidade compusera – e fizera circular – a “Elegia à definitiva morte de Waldomiro dos Santos Guimarães, Vadinho para as putas e amigos?” Cresceu rápida a discussão, não tardou a azedar-se, a ser motivo de inimizades, retaliações, epigramas, e até uns tapas. Circunscritos, porém, debates e rancores, dúvidas e certezas, afirmações e negações, xingamentos e tabefes às mesas dos bares, onde, em torno de geladas bramotas, reuniam-se noite a dentro os incompreendidos talentos jovens (a demolirem e a arrasarem toda a literatura e toda a arte anteriores ao feliz aparecimento dessa nova e definitiva geração) e os subliteratos tenazes, empedernidos, resistindo a todas as inovações, com seus trocadilhos, seus epigramas, suas frases retumbantes; empunhando uns e outros – génios imberbes e beletritas de barba por fazer – com a mesma violenta disposição de leitura, suas últimas produções em prosa e verso, cada uma delas e todas elas destinadas a revolucionar as letras brasileiras, se Deus quiser.

Nem por se limitar ao estado da Bahia; nem por ter obtido espaço nos suplementos e revistas, desvanecendo-se em discussões orais; nem por tudo isso o curioso e por vezes ácido debate pode deixar de merecer atenção e interesse, quando se narra a história de dona Flor e de seus dois maridos, no qual Vadinho é personagem importante, herói situado em primeiro plano.

Herói? Ou será ele o vilão, o bandido responsável pelos sofrimentos da mocinha, no caso dona Flor, esposa dedicada e fiel? Esse já é outro problema, desligado da questão literária a preocupar poetas e prosadores; talvez até mais difícil e grave, e ficará a vosso cargo dar-lhe resposta, se obstinada paciência vos conduzir até ao fim destas modestas páginas.

Da elegia, sim, não havia dúvidas, era Vadinho herói indiscutível, “jamais outro virá tão íntimo das estrelas, dos dados e das putas, mágico jogral”, badalavam os versos, numa louvação sem tamanho. E se o poema – a exemplo da polémica – não obteve espaço nas folhas literárias, não foi por falta de merecimento. Um certo Odorico Tavares, poeta federal pairando acima dos disse-que-disse dos vates estaduais – ademais todos eles comendo em sua mão, de rédea curta, pois o déspota controlava dois jornais e uma estação de rádio – ao ler cópia dactilografada da elegia lastimou:

- Pena não se poder publicar…

- Se não fosse anónimo… - considerou outro poeta, Carlos Eduardo.

Esse Carlos Eduardo, moço atirado a bonito, entendido em antiguidades, era sócio do Tavares num negócio, um tanto escuso, de santos antigos. Os subliteratos mais frustrados e os génios juvenis mais veementes, aqueles sem nenhuma esperança de estampar seus nomes no suplemento dominical de Odorico, acusavam-no e a Carlos Eduardo de receptadores de velhas imagens de santos, afanadas nas igrejas por um grupo de gatunos especializados, sob a chefia de um tipo de reputação duvidosa, um cochichado Mário Cravo, aliás amigo e companheiro de Vadinho
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