DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 16
Em meio a tanta discussão, a elegia fez sua carreira, lida e decorada, dita nas mesas dos bares pela madrugada, quando a cachaça desatava os sentimentos mais nobres. Os declamadores mudavam-lhe adjectivos e verbos, por vezes engoliam ou baralhavam estrofes. Mas, correcta ou deturpada, molhada de cachaça, caída no chão dos cabarés, lá ia fazendo o elogio de Vadinho, sua louvação.
Quem quer que a houvesse composto reflectia um sentimento geral naquele submundo em que Vadinho se movimentara desde a adolescência e do qual terminou sendo uma espécie de símbolo.
A elegia foi o ponto mais alto no desparrame de louvores ao moço jogador. Se lhe fosse dado ouvir tanta palavra de elogio e de saudade, Vadinho não acreditaria. Em vida jamais fora alvo de encómios e loas, muito ao contrário: Vivia a lhe martelarem os ouvidos com repreensões e conselhos, sermões a propósito da sua má vida e de seus maus sentimentos.
Aliás, a sua indulgência com seus malfeitos, para com essa exibição pública de suas pretendidas qualidades, a transformarem-no em herói de poema e em figura quase lendária, durou pouco tempo. Uma semana após a sua morte já as coisas começavam a ser repostas em seus lugares, a opinião das classes conservadoras, responsáveis pela moral e pela decência, passou a manifestar-se pela boca das comadres e das vizinhas, tentando sobrepor-se ao anárquico e dissolvente panegírico estabelecido pela subversiva ralé dos castelos e casinos, na criminosa tentativa de solapar os costumes e o regime.
Criava-se assim, um novo e apaixonante problema, como se já não bastasse o da lavra dos versos. De referência a este último, provas foram prometidas de verdadeira identidade do autor, por fim agora revelada e para sempre inscrita para no livro de ouro das letras pátrias.
Quando, anos depois da morte de Vadinho, o poeta Odorico recebeu seu exemplar das Elegias Impuras – um dos três únicos oferecidos de graça pelo poeta – magnífica edição de luxo, tiragem redigida a cem volumes autografados, ilustrada com xilogravuras de Calsans Neto, voltou-se para Carlos Eduardo, estendendo-lhe o livro precioso.
Estavam os dois amigos sentados na mesma sala de redacção na qual, num dia distante, juntos haviam lido e discutido a elegia. Apenas agora eram senhores gordos respeitáveis – e ricos e muito ricos, proprietários de colecções e de imóveis.
Odorico recordou:
- Eu não te disse naquela ocasião? Era dele – E concluiu com o mesmo sorriso e com as mesmas palavras de outrora. – Velho sem vergonha…
Também Carlos Eduardo riu no seu riso cordial, de homem realizado e tranquilo, e admirou a edição primorosa. Na capa, em letras cavadas na madeira, o nome do poeta, Godofredo Filho. Devagar, foi passando as páginas, a interrogar-se (com certa inveja): “Que ruas e ladeiras esconsas, que obscuras sendas de crepúsculo, que negras olorosas grutas, haviam juntos descobertos e amado o poeta ilustre e o pobre vagabundo, a ponto de entre eles desabrochar a rara flor da amizade?”.
Devagar, a reflectir nestes enigmas, Carlos Eduardo tocava o papel como se acariciasse suave epiderme de mulher, quem sabe pele negra, nocturno veludo? A quarta elegia, das cinco a comporem o volume, é dedicada à morte de Vadinho, “a ficha azul esquecida no tapete”.
Resolveu-se assim um problema, como prometido fora. Outro, porém surge e se impõe, e quem sabe se será possível encontrar-lhe solução? À vossa perspicácia fica ele entregue, esse mistério de Vadinho.
Quem era Vadinho? Qual sua verdadeira fisionomia? Quais suas exactas proporções? Era banhada de sol ou coberta de sombra sua face de homem?
Quem era ele, o jogral da elegia, o porreta da frase de Paranaguá Ventura, ou o desprezível malandro, o mordedor incorrigível, o mau marido na voz da vizinhança, das amizades de dona Flor? Quem melhor o conhecera e melhor agora o definia: as piedosas frequentadoras da missa das seis na Igreja de Santa Tereza ou os irrecuperáveis habitués do Tabaris, “a bola girando na roleta, o barulho e os dados, a última parada?”.
INTERVALO
Em meio a tanta discussão, a elegia fez sua carreira, lida e decorada, dita nas mesas dos bares pela madrugada, quando a cachaça desatava os sentimentos mais nobres. Os declamadores mudavam-lhe adjectivos e verbos, por vezes engoliam ou baralhavam estrofes. Mas, correcta ou deturpada, molhada de cachaça, caída no chão dos cabarés, lá ia fazendo o elogio de Vadinho, sua louvação.
Quem quer que a houvesse composto reflectia um sentimento geral naquele submundo em que Vadinho se movimentara desde a adolescência e do qual terminou sendo uma espécie de símbolo.
A elegia foi o ponto mais alto no desparrame de louvores ao moço jogador. Se lhe fosse dado ouvir tanta palavra de elogio e de saudade, Vadinho não acreditaria. Em vida jamais fora alvo de encómios e loas, muito ao contrário: Vivia a lhe martelarem os ouvidos com repreensões e conselhos, sermões a propósito da sua má vida e de seus maus sentimentos.
Aliás, a sua indulgência com seus malfeitos, para com essa exibição pública de suas pretendidas qualidades, a transformarem-no em herói de poema e em figura quase lendária, durou pouco tempo. Uma semana após a sua morte já as coisas começavam a ser repostas em seus lugares, a opinião das classes conservadoras, responsáveis pela moral e pela decência, passou a manifestar-se pela boca das comadres e das vizinhas, tentando sobrepor-se ao anárquico e dissolvente panegírico estabelecido pela subversiva ralé dos castelos e casinos, na criminosa tentativa de solapar os costumes e o regime.
Criava-se assim, um novo e apaixonante problema, como se já não bastasse o da lavra dos versos. De referência a este último, provas foram prometidas de verdadeira identidade do autor, por fim agora revelada e para sempre inscrita para no livro de ouro das letras pátrias.
Quando, anos depois da morte de Vadinho, o poeta Odorico recebeu seu exemplar das Elegias Impuras – um dos três únicos oferecidos de graça pelo poeta – magnífica edição de luxo, tiragem redigida a cem volumes autografados, ilustrada com xilogravuras de Calsans Neto, voltou-se para Carlos Eduardo, estendendo-lhe o livro precioso.
Estavam os dois amigos sentados na mesma sala de redacção na qual, num dia distante, juntos haviam lido e discutido a elegia. Apenas agora eram senhores gordos respeitáveis – e ricos e muito ricos, proprietários de colecções e de imóveis.
Odorico recordou:
- Eu não te disse naquela ocasião? Era dele – E concluiu com o mesmo sorriso e com as mesmas palavras de outrora. – Velho sem vergonha…
Também Carlos Eduardo riu no seu riso cordial, de homem realizado e tranquilo, e admirou a edição primorosa. Na capa, em letras cavadas na madeira, o nome do poeta, Godofredo Filho. Devagar, foi passando as páginas, a interrogar-se (com certa inveja): “Que ruas e ladeiras esconsas, que obscuras sendas de crepúsculo, que negras olorosas grutas, haviam juntos descobertos e amado o poeta ilustre e o pobre vagabundo, a ponto de entre eles desabrochar a rara flor da amizade?”.
Devagar, a reflectir nestes enigmas, Carlos Eduardo tocava o papel como se acariciasse suave epiderme de mulher, quem sabe pele negra, nocturno veludo? A quarta elegia, das cinco a comporem o volume, é dedicada à morte de Vadinho, “a ficha azul esquecida no tapete”.
Resolveu-se assim um problema, como prometido fora. Outro, porém surge e se impõe, e quem sabe se será possível encontrar-lhe solução? À vossa perspicácia fica ele entregue, esse mistério de Vadinho.
Quem era Vadinho? Qual sua verdadeira fisionomia? Quais suas exactas proporções? Era banhada de sol ou coberta de sombra sua face de homem?
Quem era ele, o jogral da elegia, o porreta da frase de Paranaguá Ventura, ou o desprezível malandro, o mordedor incorrigível, o mau marido na voz da vizinhança, das amizades de dona Flor? Quem melhor o conhecera e melhor agora o definia: as piedosas frequentadoras da missa das seis na Igreja de Santa Tereza ou os irrecuperáveis habitués do Tabaris, “a bola girando na roleta, o barulho e os dados, a última parada?”.
INTERVALO
DO TEMPO INICIAL DA VIUVEZ, TEMPO DE NOJO, DO LUTO FECHADO COM AS MEMÓRIAS DE AMBIÇÕES E ENGANOS, DE NAMORO E CASAMENTO, DA VIDA MATRIMONIAL DE VADINHO E DONA FLOR, COM FICHAS E DADOS E A DURA ESPERA AGORA SEM ESPERANÇA ( E A INCÒMODA PRESENÇA DE DONA ROSILDA) (COM EDGAR COCO AO VIOLINO, CAYMMY AO VIOLÃO E O DOUTOR WALTER DA SILVEIRA COM SUA FLAUTA ENCANTADA)
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