quinta-feira, janeiro 14, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 18




Recolheria as lamúrias de dona Rozilda, servir-lhe-ia o lenitivo da resignação à vontade de Deus, ele sabe o que faz!, juntas debateriam, a mãe e a amiga íntima, a propósito da nova condição de dona Flor, viúva, só no mundo e ainda tão jovem. Para isso viera dona Norma preparada: gestos, palavras, atitudes, e tudo sincero e sentido, não havia jamais em sua maneira de ser e agir a menor parcela de representação. Dona Norma sentia-se um pouco responsável por todo o mundo, era a providência do bairro, uma espécie de pronto-socorro das imediações. De toda a vizinhança acorriam à porta de sua casa – a melhor casa da rua, só a dos argentinos da fábrica de cerâmica, a dos Bernabós, podia com ela comparar-se, talvez um pouco mais luxuosa – vinham por empréstimos, do sal e da pimenta à louça para almoços e jantares e a peças de vestuário para festas:

- Dona Nora, mamãe mandou perguntar se a senhora podia emprestar uma xícara de farinha-do-reino que é para um bolo que ela está fazendo. Depois manda pagar…

Era Aninha, a filha mais jovem do dr. Ives, vizinho próximo, cuja esposa, dona Emina, cantava canções árabes acompanhando-se ao piano.

- Mas, menina, sua mãe não foi ao mercado ontem? Era a mulher mais esquecida…uma xícara basta? Diga a ela que, se quiser, mande buscar…

Ou bem era o moleque da residência de dona Amélia, com sua voz esganiçada:

- Dona Norma, a patroa mandou pedir a gravata preta de seu Sampaio, a de laço de borboleta, que a de seu Ruas a traça roeu…

Quando não aparecia dona Risoleta, dramática, com seu ar de macerada:

- Norminha, acuda por amor de Deus…

- O que é mulher?

- Um bêbado se plantou na porta de casa, não há jeito de sair, o que é que eu vou fazer?

Lá ia dona Norma, reconhecia sorridente:

- Ora, é Sebastião Cachaça, gente minha…Vam’bora, saia daí, vá tirar uma soneca na garagem lá de casa…

E assim o dia inteiro, bilhetes pedindo dinheiro emprestado, chamado urgente para acudir um doido, atender um enfermo, e os fregueses das injecções – dona Norma fazia concorrência gratuita aos médicos e às farmácias, sem falar nos veterinários pois todas as gatas das cercanias vinham dar cria nos fundos de sua casa, ali não lhe faltando jamais assistência e alimento.

Distribuía amostras de remédios – fornecidos pelo dr. Ives – cortava vestidos e moldes – era diplomada em corte e costura – escrevia cartas para o pessoal doméstico, dava conselhos, ouvia lamentações, secundava projectos matrimoniais, chocava namoros, resolvia os mais diferentes problemas, sempre alvoraçada, levando Zé Sampaio a concluir:

- É uma caga voando, não tem paciência nem para sentar no aparelho… - e metia o dedo grande na boca resignado.

Preparara-se a boa vizinha para acolher uma lastimosa dona Rozilda, em seu peito a abrigar e a confortar. E a outra lhe saía com aquele contra-senso absurdo, como se a morte do genro fosse notícia festiva. Lá vinha ela descendo a escada, numa das mãos o clássico embrulho de farinha de Nazareth, bem torrada e olorosa, além de uma cesta onde se movia indócil uma corda de caranguejos adquirida a bordo; na outra a sombrinha e a maleta. Ainda bem, pensou dona Norma, não era a mala grande indicativa de demora, era o pequeno baú de madeira das viagens rápidas, uns poucos dias e até outra. Adiantou-se para ajudá-la e para dar-lhe o cerimonioso abraço de pêsames, por nada no mundo deixaria de cumprir o triste dever das condolências.

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