DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS
Já não podia ele, porém, arruinar seus reformulados planos, amadurecidos nos dias de nojo. Nesses novos projectos a chave mestra, a abrir as portas do conforto e do bem-estar, era o matrimónio, o de Rosália e o de Flor.
Casá-las (colocá-las, dizia dona Rosália) o melhor possível, com moços de nome, rebentos de famílias distintas, filhos de coronéis fazendeiros, ou com dinheiro e crédito nos bancos. Se era esta a meta a alcançar, como expor as meninas aos empregos vagabundos, como exibi-las pobretonas, cuja graça e juventude mal vestidas iriam despertar nos ricos e importantes apenas os baixos instintos, os pecaminosos desejos, merecendo-lhes propostas, certamente, mas outras que não as honestas de noivado e casamento?
Dona Rozilda queria as filhas em casa, recatadas, ajudando-a com o trabalho e com o comportamento, a manter aquela aparência de conforto, a afivelar aquela máscara de gente senão opulenta pelo menos remediada e de boa educação.
Quando as moças saíam para visitas a famílias conhecidas, para matinês dominicais, para alguma festinha em casa amiga, iam nos trinques, bem vestidas, no ilusório aspecto de herdeiras de fino trato. Dona Rozilda era económica, contando os vinténs na tentativa de equilibrar as finanças domésticas e seguir adiante, mas não tolerava desmazelo das filhas no vestir, nem mesmo na intimidade do lar. Exigi-as impecáveis, dignas de acolher a qualquer momento o príncipe encantado quando ele de repente surgisse. Para isso dona Rozilda não media esforço.
Certa vez Rosália foi convidada para uma dancinha no aniversário da menina mais velha do dr. João Falcão, um graúdo: palacete, lustres de cristal, talheres de prata, garçons a rigor. Os outros convivas tudo gente fina, podre de rica, da melhor sociedade, uma lordeza, só vendo. Pois bem: Rosália fez sensação, era a mais bem apresentada, a mais chique, a ponto de a louvar dona Detinha, a bondosa anfitriona:
- A mais linda de todas…Rosália, um mimo, uma boneca…
Parecia, sim, a mais rica e aristocrática. No entanto, lá estavam as meninas mais afortunadas e mais nobres da nobreza local, sangue azul de bacharéis e médicos, de funcionários e banqueiros, de lojistas e comerciantes. Com sua tez mate de cabo-verde, suave e pálida, era a branca mais autêntica entre todas aquelas finíssimas brancas baianas apuradas em todos os tons de moreno; aqui entre nós, que ninguém nos ouça, mestiça da mais fina e bela mulataria!
Ninguém, ao vê-la tão elegante, diria ter sido aquele vestido, o mais louvado da festa, obra dela própria e de dona Rozilda, o vestido e tudo o mais, inclusivé a transformação de um velho par de sapatos numa obra prima de cetim. Entre as prendas de Rosália, era a costura a mais destacada, cortava e cosia, bordava e tricotava.
Sim, eram elas, as meninas, com as suas prendas, sob a férrea direcção de dona Rozilda, os autores daquele milagre de sobrevivência: Heitor no colégio, a concluir o ginásio, o aluguel do primeiro andar pago em dia, assim como as prestações do rádio e do novo fogão, e ainda sendo postos de parte uns miúdos para a conclusão dos enxovais, para os vestidos de casamento, os véus, as grinaldas, pois lençóis e fronhas, camisolas e combinações iam-se pouco a pouco acumulando nos baús.
E SEUS DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 25
Já não podia ele, porém, arruinar seus reformulados planos, amadurecidos nos dias de nojo. Nesses novos projectos a chave mestra, a abrir as portas do conforto e do bem-estar, era o matrimónio, o de Rosália e o de Flor.
Casá-las (colocá-las, dizia dona Rosália) o melhor possível, com moços de nome, rebentos de famílias distintas, filhos de coronéis fazendeiros, ou com dinheiro e crédito nos bancos. Se era esta a meta a alcançar, como expor as meninas aos empregos vagabundos, como exibi-las pobretonas, cuja graça e juventude mal vestidas iriam despertar nos ricos e importantes apenas os baixos instintos, os pecaminosos desejos, merecendo-lhes propostas, certamente, mas outras que não as honestas de noivado e casamento?
Dona Rozilda queria as filhas em casa, recatadas, ajudando-a com o trabalho e com o comportamento, a manter aquela aparência de conforto, a afivelar aquela máscara de gente senão opulenta pelo menos remediada e de boa educação.
Quando as moças saíam para visitas a famílias conhecidas, para matinês dominicais, para alguma festinha em casa amiga, iam nos trinques, bem vestidas, no ilusório aspecto de herdeiras de fino trato. Dona Rozilda era económica, contando os vinténs na tentativa de equilibrar as finanças domésticas e seguir adiante, mas não tolerava desmazelo das filhas no vestir, nem mesmo na intimidade do lar. Exigi-as impecáveis, dignas de acolher a qualquer momento o príncipe encantado quando ele de repente surgisse. Para isso dona Rozilda não media esforço.
Certa vez Rosália foi convidada para uma dancinha no aniversário da menina mais velha do dr. João Falcão, um graúdo: palacete, lustres de cristal, talheres de prata, garçons a rigor. Os outros convivas tudo gente fina, podre de rica, da melhor sociedade, uma lordeza, só vendo. Pois bem: Rosália fez sensação, era a mais bem apresentada, a mais chique, a ponto de a louvar dona Detinha, a bondosa anfitriona:
- A mais linda de todas…Rosália, um mimo, uma boneca…
Parecia, sim, a mais rica e aristocrática. No entanto, lá estavam as meninas mais afortunadas e mais nobres da nobreza local, sangue azul de bacharéis e médicos, de funcionários e banqueiros, de lojistas e comerciantes. Com sua tez mate de cabo-verde, suave e pálida, era a branca mais autêntica entre todas aquelas finíssimas brancas baianas apuradas em todos os tons de moreno; aqui entre nós, que ninguém nos ouça, mestiça da mais fina e bela mulataria!
Ninguém, ao vê-la tão elegante, diria ter sido aquele vestido, o mais louvado da festa, obra dela própria e de dona Rozilda, o vestido e tudo o mais, inclusivé a transformação de um velho par de sapatos numa obra prima de cetim. Entre as prendas de Rosália, era a costura a mais destacada, cortava e cosia, bordava e tricotava.
Sim, eram elas, as meninas, com as suas prendas, sob a férrea direcção de dona Rozilda, os autores daquele milagre de sobrevivência: Heitor no colégio, a concluir o ginásio, o aluguel do primeiro andar pago em dia, assim como as prestações do rádio e do novo fogão, e ainda sendo postos de parte uns miúdos para a conclusão dos enxovais, para os vestidos de casamento, os véus, as grinaldas, pois lençóis e fronhas, camisolas e combinações iam-se pouco a pouco acumulando nos baús.
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