segunda-feira, fevereiro 01, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 33



Numa breve e polida curvatura, Mirandão, o rosto resplandecente de simpatia, pediu licença, sentou-se ao lado de dona Rozilda. As cadeiras de palhinha circundavam a sala, encostadas à parede. O estudante crónico (perseverante, corrigia ele, se lhe recordavam seus sete anos de Escola de Agronomia) estendeu as pernas, ajustou cuidadoso o vinco das calças, analisando os pares no tango argentino caprichado, figurações difíceis, passos quase acrobáticos, sorriu aprovativo: nenhum dançarino podia comparar-se a Vadinho, nenhum com sua classe, benza-te deus e te livre do mau olhado, t’esconjuro!, Mirandão era supersticioso. Mulato claro e pachola, de seus vinte e oito anos de idade a mais popular figura dos castelos e das casas de jogo da Bahia.

Sentindo o olhar de dona Rozilda a acompanhar o seu, para ela voltou-se, abrindo ainda mais o cativante sorriso, a examiná-la com olho crítico e apreciador. Bucho definitivo, sem serventia, concluiu com pesar. Não devido à idade. Há muito Mirandão inscrevera em seu código de procedimento com as mulheres um parágrafo afirmando jamais a nenhuma dever-se desprezar por madura ou velha, caso contrário podia cair-se em erros fatais. Mulheres já além dos cinquenta anos por vezes mantinham rara e admirável forma e juventude, capazes de surpreendentes performances, de recordes imprevisíveis. Ele o sabia por viva experiência, e ainda agora, ao fitar as ruínas de dona Rozilda, recordava-se do esplendor crepuscular de Célia Maria Pia dos Wanderleys e Prata, todos esses nomes para designar uma tampinha desse tamanho, senhora da alta sociedade, mulherzinha espevitada, levada da breca. Com mais de sessenta anos confessados, e a pôr florestas de chifres no marido e nos amantes, insaciável. Com netas balzaquianas e bisnetas casadoiras, e ela a fazer caridade – e que caridade!, era árdega e magnânima fêmea – a jovens estudantes necessitados. Mirandão semicerrou os olhos: para não ver a vizinha, carcaça sem recurso nem escapatória e também para melhor recordar o uterino e inesquecível furor de Célia Maria Pia dos Wanderleys e Prata e as notas de cinquenta e cem mil réis que ela, grata, rica e desperdiçada lhe enfiava às escondidas no bolso do paletó. Ah!, bons tempos aqueles, Mirandão a iniciar-se nos estudos e nos mistérios da vida, calouro de agronomia, cascabulho da noite e Maria Pia dos Wanderleys gastava legítimo perfume francês nas rugas do pescoço e nos baixios.

Reabriu os olhos para a sala, a sentir nas narinas a fragrância da inolvidável tetravó; a seu lado, o xaveco com cara de bruxa – argaço vil, pelancas nas bochechas, coque nos cabelos – continuava a fitá-lo com seus olhos miúdos. Era um espantalho, devia feder sob as anáguas, um aftim de carne passada; Mirandão aspirou rápido as sobras do perfume francês na memória distante – ah!, nobre Wanderley, onde andarás agora septuagenária? A velha na cadeira, que estrepe mais sem misericórdia!

Educado, porém, como se honrava de ser, o permanente estudante de agronomia não deixou de sorrir para dona Rozilda. Uma bruaca, uma catraia, resto de peixe seco e salgado, inútil para qualquer acção ou pensamento lúbrico, nem assim deixava de merecer respeito e atenção: exausta mãe de família, pelo jeito viúva; e Mirandão era, no fundo, um moralista extraviado nas casas de tavolagem. Ao demais, chegara seu momento de euforia.

Festinha animada, não acha? – perguntou a dona Rozilda iniciando o histórico diálogo.

Era sempre assim, em cada um dos seus frequentes pileques. Primeiro tinha aquela fase de esfuziante júbilo. Parecia-lhe o mundo perfeito e bom, a vida alegre e fácil, e naquela hora Mirandão tudo podia compreender e estimar, estabelecia-se entre ele e as demais criaturas um clima
de comunhão total, mesmo entre ele e a fedida arraia mijona, sua vizinha de cadeira.

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