quarta-feira, fevereiro 24, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 53

Prestígio? Só se fosse nas ruas do meretrício mais baixo, junto às casteleiras e aos escroques… Oficial de Gabinete do Governador? Se ele se atrevesse a entrar na Gabinete do Governador seria tomado preso, metido no xadrez. Sua nomeação de professora? Era melhor nem pensar nisso, quem sabe dos estrupícios e tratantadas postos em prática pelo patife?

E como fora Célia, insignificante professora primária, descobrir toda aquela rede de enganos, pondo a claro todos os detalhes da farsa, não deixando persistir uma sombra sequer de dúvida, um pode-ser-quem-sabe ao qual se agarrasse dona Rozilda, náufraga no mar da porca existência? Por que tamanho empenho em desmascarar e denunciar o trapaceiro, o barato sedutor?

Vadinho se surpreendeu magoado:

- Logo quem… Não fiz mal nenhum a essa moça, ao contrário…

Por isso mesmo, talvez. Quando Vadinho lhe arranjou o emprego, Célia ficou ao mesmo tempo grata e ofendida. No fundo, não lhe perdoava ter-se enganado a seu respeito, não ser ele o gigolô pressentido por seu faro de azedume e maldade: a existência reles fizera-a invejosa e ruim. A cada dia, menos grata e mais ofendida – aquele indivíduo não tinha jeito de prestar… Por acaso deram-lhe uma pista e ela tanto futucara, tanto xeretara até descobrir em todas as minúcias a teia de mentiras iniciada por Mirandão em casa do Major e por cujo crescimento era mais responsável a vida do que o próprio Vadinho. Refeitos os capítulos daquele imaginoso folhetim, Célia sentiu-se realizada: não a enganavam assim facilmente, tinha olho e faro, para tapeá-la fazia-se necessário mais do que um emprego, nomeação e posse. Satisfeita, feliz com sua torpeza, nem lhe pesava a perna manca ao subir a escada do primeiro andar onde dona Rozilda e Flor costuravam peças do enxoval. “Não passava o almofadinha de um mísero gigolô, ela, Célia jamais tivera dúvidas. Resplandecia seu encardido semblante, poucas vezes se sentira assim alegre, muita gente ia chorar naquele dia, arrenegar o diabo, ranger os dentes. E existe no mundo algo tão excitante, espectáculo comparável ao sofrimento alheio?

Para Célia não existia nada igual. Jamais um homem olhara para seu corpo com olhos de desejo, jamais alguém lhe sorrira com amor, e as crianças da escola tinham-lhe medo, fugiam dela.

Dona Rozilda, em faniquito, propunha-se a matar e a morrer, gemia por um copo com água. Flor não lhe deu importância, não ouviu seus ais, ocupada com Célia:

- Puxe daqui, sinhá cachorra, não volte mais…

- Eu, Flor? Você está falando sério? Por quê?

- Mesmo que ele fosse o que você diz, você não podia vir fuxicar, ele lhe empregou… Você devia era esconder o que soubesse contra ele, estava morrendo de fome e ele lhe arranjou o lugar…

- Eu sei lá se foi ele… Quem viu ele arranjar? Pra mim foi a carta do padre Barbosa…

Flor quase não elevava a voz mas suas palavras cuspiam nojo e desprezo:

- Puxe daqui antes que eu lhe ensine a não se meter na vida dos outros, cadela vagabunda…

- Pois fique com ele, que lhe faça bom proveito, tu nasceu mesmo para descarada…

Baixou a escada a clamar contra a gratidão humana.

Site Meter