DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
A modinha de Cândido das Neves subia a ladeira mais depressa do que eles, apareciam cabeças curiosas, demoravam-se à janela presas ao fascínio da música, à voz de Caymmi. A negra Juventina batia palmas aplaudindo, era do partido de Flor e de Vadinho e doida por serenatas. Alguns despertavam com raiva, na ideia de protestar, mas a doçura da canção os vencia, adormeciam ouvindo o chamado de amor. Doutor Carlos Passos foi um desses; saltou da cama numa senha assassina, seu dia era trabalhoso, começava no hospital às seis da manhã e por vezes só volvia a casa às nove da noite. Mas entre o quarto e a janela foi-se aplacando sua ira e trauteava a melodia ao debruçar-se no beiral para ouvir mais cómodo.
Lua manda tua luz prateada
Despertar a minha amada…
Estavam parados agora debaixo da luz de um poste, bem na esquina em frente ao sobrado. Vadinho destacara-se um pouco do grupo para melhor situar-se sob o foco eléctrico e mais facilmente ser visto por Flor. Os sons da flauta do doutor Silveira subiam pela parede, os ais do cavaquinho penetravam na sacada, o violino de Edgard Cocô abria a janela do quarto da moça, ia arrancá-la da cama num estremecimento. “Deus do céu, é Vadinho!” Correu para a janela, suspendeu a veneziana, lá estava ele sob a luz, os loiros cabelos, os braços estendidos para o alto:
Quero matar meus desejos
Sufocá-los com meus beijos…
Alguns notívagos juntavam-se a escutar, Cazuza Funil saíra vestido num velho pijama, atraído pela música e pela possibilidade de alguma garrafa em mãos de seresteiros.
Na sacada do primeiro andar, surgindo da escuridão, apareceu dona Rozilda, sua cólera cortou a música e a poesia:
- Vadios, vagabundos!
Mais alta a canção, a voz de Caymmi subia para as estrelas:
Canto…
E a mulher que eu amo tanto
Não me escuta está dormindo…
Onde encontrara Flor aquela rosa de tão vermelha quase negra? Vadinho a recolhia no ar, noite romântica de namorados, no céu a lua amarela e um perfume de alecrim, toda a ladeira a cantar em coro para Flor presa em seu quarto:
Lá no alto a lua esquina
Está no céu tão pensativa
E as estrelas tão serenas…
Desembocava dona Rozilda na porta da rua, escancarando-a, desfeito o coque, envolta numa bata enxovalhada e em ódio. Varou para o grupo, num desvario de fúria:
- Fora, fora daqui! – gritava em desespero – chamo a polícia, dou queixa na delegacia, cachorros!
Tão violenta e inesperada aparição – por instantes eles perderam o aprumo, sustiveram o canto. Dona Rozilda ergueu-se vitoriosa na rua em silêncio:
- Fora, cambada de cachorros, fora!
Mas foi só um instante. Logo a flauta do doutor Silveira fez ouvir um som como um riso de mofa, como o assobio de um moleque, musiquinha mais de deboche e de sotaque:
Iaiá me deixe
Subir nessa ladeira…
Então todos viram Vadinho adiantar-se em direcção à sua futura sogra e diante dela, ao som da flauta, executar com perfeição e donaire, num catado de pés e num gingo de corpo, o passo do siri-boceta, o difícil e famoso passo do siri-boceta.
Sufocada, em pânico, sem voz, dona Rozilda recolheu suas últimas forças, o suficiente para correr escadas acima.
A serenata reconquistou a noite e a rua, prosseguiu rumo à madrugada.
Notívagos mais ou menos bêbados reforçaram o coro, o guarda-nocturno surgiu em sua ronda e foi ficando por ali e aplaudir. A garrafa pressentida por Cazuza apareceu, o reportório era vasto. Cantaram Vadinho e Caymmi, cantou Jener Augusto, cantou doutor Walter com voz profunda de baixo, cantou o guarda-nocturno, seu sonho era cantar na Rádio. Cantava a rua inteira na serenata de Flor, Flor reclinada em sua alta janela, vestida de babados e rendas, coberta de luar. Lá em baixo, Vadinho, galante cavalheiro, na mão a rosa de tão vermelha quase negra, rosa de seu amor.
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 56
A modinha de Cândido das Neves subia a ladeira mais depressa do que eles, apareciam cabeças curiosas, demoravam-se à janela presas ao fascínio da música, à voz de Caymmi. A negra Juventina batia palmas aplaudindo, era do partido de Flor e de Vadinho e doida por serenatas. Alguns despertavam com raiva, na ideia de protestar, mas a doçura da canção os vencia, adormeciam ouvindo o chamado de amor. Doutor Carlos Passos foi um desses; saltou da cama numa senha assassina, seu dia era trabalhoso, começava no hospital às seis da manhã e por vezes só volvia a casa às nove da noite. Mas entre o quarto e a janela foi-se aplacando sua ira e trauteava a melodia ao debruçar-se no beiral para ouvir mais cómodo.
Lua manda tua luz prateada
Despertar a minha amada…
Estavam parados agora debaixo da luz de um poste, bem na esquina em frente ao sobrado. Vadinho destacara-se um pouco do grupo para melhor situar-se sob o foco eléctrico e mais facilmente ser visto por Flor. Os sons da flauta do doutor Silveira subiam pela parede, os ais do cavaquinho penetravam na sacada, o violino de Edgard Cocô abria a janela do quarto da moça, ia arrancá-la da cama num estremecimento. “Deus do céu, é Vadinho!” Correu para a janela, suspendeu a veneziana, lá estava ele sob a luz, os loiros cabelos, os braços estendidos para o alto:
Quero matar meus desejos
Sufocá-los com meus beijos…
Alguns notívagos juntavam-se a escutar, Cazuza Funil saíra vestido num velho pijama, atraído pela música e pela possibilidade de alguma garrafa em mãos de seresteiros.
Na sacada do primeiro andar, surgindo da escuridão, apareceu dona Rozilda, sua cólera cortou a música e a poesia:
- Vadios, vagabundos!
Mais alta a canção, a voz de Caymmi subia para as estrelas:
Canto…
E a mulher que eu amo tanto
Não me escuta está dormindo…
Onde encontrara Flor aquela rosa de tão vermelha quase negra? Vadinho a recolhia no ar, noite romântica de namorados, no céu a lua amarela e um perfume de alecrim, toda a ladeira a cantar em coro para Flor presa em seu quarto:
Lá no alto a lua esquina
Está no céu tão pensativa
E as estrelas tão serenas…
Desembocava dona Rozilda na porta da rua, escancarando-a, desfeito o coque, envolta numa bata enxovalhada e em ódio. Varou para o grupo, num desvario de fúria:
- Fora, fora daqui! – gritava em desespero – chamo a polícia, dou queixa na delegacia, cachorros!
Tão violenta e inesperada aparição – por instantes eles perderam o aprumo, sustiveram o canto. Dona Rozilda ergueu-se vitoriosa na rua em silêncio:
- Fora, cambada de cachorros, fora!
Mas foi só um instante. Logo a flauta do doutor Silveira fez ouvir um som como um riso de mofa, como o assobio de um moleque, musiquinha mais de deboche e de sotaque:
Iaiá me deixe
Subir nessa ladeira…
Então todos viram Vadinho adiantar-se em direcção à sua futura sogra e diante dela, ao som da flauta, executar com perfeição e donaire, num catado de pés e num gingo de corpo, o passo do siri-boceta, o difícil e famoso passo do siri-boceta.
Sufocada, em pânico, sem voz, dona Rozilda recolheu suas últimas forças, o suficiente para correr escadas acima.
A serenata reconquistou a noite e a rua, prosseguiu rumo à madrugada.
Notívagos mais ou menos bêbados reforçaram o coro, o guarda-nocturno surgiu em sua ronda e foi ficando por ali e aplaudir. A garrafa pressentida por Cazuza apareceu, o reportório era vasto. Cantaram Vadinho e Caymmi, cantou Jener Augusto, cantou doutor Walter com voz profunda de baixo, cantou o guarda-nocturno, seu sonho era cantar na Rádio. Cantava a rua inteira na serenata de Flor, Flor reclinada em sua alta janela, vestida de babados e rendas, coberta de luar. Lá em baixo, Vadinho, galante cavalheiro, na mão a rosa de tão vermelha quase negra, rosa de seu amor.
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