quinta-feira, março 11, 2010


DONA

FLOR

E SEUS

DOIS

MARIDOS

EPISÓDIO Nº 65

Nos tempos em que o jogo funcionava à tarde e à noite no Tabaris, Vadinho nem vinha jantar. Comia uma besteira qualquer, um acarajé, um abará, um sanduíche, indo cear alta madrugada, quando a última porta se fechava na derradeira arapuca… Os mais renitentes – ele, Giovani, Anacreon, Mirabeau Sampaio, Meia Porção, o negro Arigof, elegante como um príncipe de romance russo – saíam em grupo para a Rampa do Mercado, as Sete Portas, a casa de Andreza, para um fregue-mosca qualquer onde houvesse um caruru de folhas, um vatapá de peixe, cerveja gelada, cachaça pura.

Quando por acaso vinha jantar, era para sair logo depois, antes das nove, sempre apressado. Frustrando as esperanças de dona Flor de vê-lo chegar da rua como os maridos das demais chegavam do trabalho; indo pôr-se à vontade, vestir o pijama, ler os jornais, comentar os factos, convidá-la talvez para uma visita ou para um cinema. Quanto tempo ela, pois passava sem ir ao cinema? Era preciso que dona Norma a arrastasse à matiné pois com Vadinho era tão raro – raro e inesperado – decorriam meses sem saírem juntos. Nunca deixou de lhe perguntar, no entanto, ao vê-lo despir o paletó e afrouxar o nó da gravata:

- Hoje tu não sai mais, não é?

Vadinho sorria antes de responder:

- Saio mas volto logo, meu bem. Não demora nada, tenho um compromisso mas é rápido… - resposta também invariável.

Certas vezes chegava antes do jantar mas com outro objectivo. Nos dias da total derrota: quando ao cair da tarde, nada havia obtido, fracasso absoluto em todas as tentativas; falho o palpite do bicho, insensíveis os gerentes dos bancos, sumidos os avalistas, ninguém para morder. Nesses dias de caiporismo sem jeito vinha para casa azucrinado. Ele, sempre tão glutão, amando saborear os quitutes de dona Flor, suas receitas sem igual, nessas tardes comia em silêncio, inquieto, e comia pouco, às carreiras, sem ligar à comida. Lançava olhares sorrateiros à esposa como a medir-lhe o humor a sua receptividade. Porque vinha para lhe pedir dinheiro, sempre emprestado, é claro, com formais promessas de pagamento, todas até hoje por cumprir. E ela terminava entregando-lhe algum, por bem ou por mal; em certas ocasiões em doloroso e mesmo sórdido constrangimento. Eram os dias do pior Vadinho, quando ele se vestia de brutalidade e irritação, quando seu encanto e graça davam lugar a uma cruel estupidez.

Dona flor sabia, antes mesmo de ele pronunciar uma só palavra, de suas intenções malsãs. Ele chegava de molesto na rua, um surdo enfado a marcar-lhe o rosto. Naqueles anos ele aprendera a conhecê-lo nos mínimos detalhes, desde o peso e a cadencia do seu passo até ao brilho matreiro de seus olhos quando os punha numa fêmea qualquer, nas rumorosas alunas, no decote de dona Gisa, ou, indo com dona Flor pela rua, em quantas encontrava, a despi-las mais ou menos conforme mais ou menos elas o merecessem por bonitas ou feias.

Distribuía-se Vadinho no correr da tarde em busca de fundos para as apostas, vinha ou não jantar, carinhoso ou brusco, e, com a noite, rumava para seu torvo destino.

Torvo? Não se aplicavam à natureza de Vadinho nem cabiam em sua realidade adjectivos assim tão solenes e lúgubres. Destino nocturno, sim, mas torvo não. Em Vadinho não assentavam as sombras e os negrumes, as angústias e os dramas tão ao sabor das virtuosas campanhas contra o
jogo. Não lhe tremiam as mãos ao depositar as fichas nem uivava de remorso pela madrugada.

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