sábado, março 20, 2010


DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS

EPISÓDIO Nº 73


Imagine-se sua agitação, o impacto recebido quando um dia dona Dinorá se acercou para contar-lhe a “última de Vadinho”. Dele, segundo a intrigante, houver filho uma tal Dionísia, mulata com fama de grande boniteza, ora modelo de pintores (posara para um troca-tintas modernista, um nomeado carybé que, com desplante e acinte à sociedade, a retratara vestida de rainha), ora capital e adorno do democrático e afreguesado castelo de Luciana Paca, na zona de maior movimento.

Dona Dinorá vinha contar de pura bondade, não por espírito de intriga ou de fuxico, não era dessas. Cumpria, pesarosa, sua obrigação de amiga para que a pobrezinha da dona Flor, tão boa e tão distinta não ficasse na ignorância, os demais rindo dela pelas costas…

- Foi arranjar filho logo com uma mundana…

Dizia mundana para não dizer substantivo mais forte. Dona Dinorá era a delicadeza em pessoa e tinha horror a magoar, a ferir quem quer que fosse, mesmo a mulher perdida e sem vergonha, prenha de homem casado, pegando barriga com marido de outra. “Não sou dessas que adoram fuxicar, não faço mal a ninguém”, afirmava dona Dinorá e havia quem acreditasse.

Na cama de viúva, emudecidos os últimos acordes da serenata, perdidas as vozes dos cantores e a rosa negra, dona Flor estremece ao recordar aqueles dias de tamanho susto e dura decisão. De que não era capaz para não perder Vadinho, para conservá-lo a seu lado, para tê-lo mesmo assim, jogador e mulherengo, com rapariga de casa posta, fazendo filho por aí, na rua, ao deus-dará. Do que seria capaz ela o mostrou então.

Quando as duas mulheres saíram da elegante missa das onze na Igreja de São Francisco, num domingo lavado de Junho, manhã luminosa e fresca, e, em passo decidido, atravessaram o Terreiro de Jesus em direcção ao labirinto das estreitas ruas antigas do Pelourinho, moleques cantavam um samba de roda, batendo o ritmo em latas vazias de goiabada:

Ô mulher do balaio grande!
Ô do balaio grande!
- Bom balaio!

Voltou-se dona Norma para a companheira, a resmungar:

- Esses fedelhos por que não vão mexer com a traseira da mãe deles?...

Talvez não passasse de simples coincidência, não houvessem os moleques em suas farturas se inspirado; mesmo assim dona Norma, por via das dúvidas, lançou terrível olhar em direcção aos ousados. Olhar que de imediato se adoçou, ao descobrir um pequenino de seus três anos, vestido de farrapos, o rosto imundo de remela e ranho, a sambar no meio da roda:

- Repare que gracinha, Flor, que coisa mais linda aquele satanasinho que está dançando…

Dona Flor considerou a malta de crianças andrajosas. Muitas outras disseminavam-se pela praça de intensa vida popular, misturando-se aos fotógrafos de lambe-lambe, tentando roubar frutas nos cestos das laranjas, limas, tangerinas, umbus e sapotis. Aplaudiam um camelô a mercar milagrosos produtos farmacêuticos, uma cobra enrolada ao pescoço, repelente gravata. Pediam esmola nas portas das cinco igrejas do largo, quase assaltando os fiéis ricos. Trocavam deboches com sonolentas rameiras, em geral muito jovens, em ronda pelo jardim na expectativa de um apressado freguês matinal.

Multidão de meninos rotos e atrevidos, os filhos das mulheres da zona, sem pai e sem lar. Viviam no abandono, soltos nos becos, em breve seriam capitães-da-areia, conheceriam os corredores da
polícia.

Site Meter