quarta-feira, março 24, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 76



No domingo ouviram missa na Igreja de São Francisco (dona Flor levara uma vela enfeitada de flores, promessa para tudo correr bem), depois atravessaram o terreiro e foram encontrar o negro João Alves em sua banca de engraxate, no passeio da Faculdade de Medicina. Estava cercado de crianças, e tanto o negrinho de carapinha, quanto os diversos mulatos mais escuros ou mais claros, assim como o loiro de cabelos de trigo, todos o tratavam de avô. Eram todos seus netos, aqueles meninos e os demais, soltos no dédalo de ruas entre o Terreiro de Jesus e a Baixa dos Sapateiros. O negro João Alves jamais tivera filhos nem com sua mulher nem com outras mas arranjava madrinhas para os seus netos, comida, roupas velhas e até cartas de abc. Vivia num porão ali perto, com seus resmungos, suas mandingas, sua aparente brabeza, suas má-criações, alguns dos netos, e o porão abria sobre um vale plantado de verde, de seu buraco o negro João Alves comandava as cores e a luz da Bahia.

- Oxente!, quem está aí, bons olhos lhe vejam, minha comadre dona Norma… e como vai seu Zé Sampaio? Diga a ele que vou aparecer na loja um dia para buscar uns sapatos para os meninos…

Os moleques cercavam as duas amigas, dona Norma viera preparada, em sua mão surgiu um saco de caramelos. João Alves soltou um assobio, alguns meninos apareceram correndo entre eles um cafuso de uns quatro ou cinco anos. O negro acariciou-lhe a cabeça:

- Peça a bênção à tua madrinha, sua coisa-ruim…

- Dona Norma deu-lhe a bênção e um níquel de dez tostões, enquanto o negro queria saber que bons ventos haviam trazido sua comadre até ali.

- Pois, meu compadre, é que tenho um favor a lhe pedir, coisa de muita delicadeza.

- Coisa delicada não é para as minhas mãos, sou meio rude como vosmicê sabe…

- Quero dizer: coisa reservada, para ficar em segredo.

Aí está certo que não sou linguarudo nem mexeriqueiro. Pode desatar a língua, comadre…

- O compadre conhece por aqui uma tal Dionísia? Não sei bem mas ouvi dizer que mora nessas redondezas.

- E vosmicê tem algum trato com ela?

- Eu propriamente não, meu compadre. É essa minha amiga que tem um assunto a ver com ela…

João Alves mediu dona Flor de alto a baixo.

- Ela tem um assunto a ver com Dionísia de Oxóssi?

- Capaz seja a mesma… Ouço dizer que é bonitona.

João Alves coçou a carapinha:

Bonitona? Me adisculpe, minha comadre, mas dobre a língua. Bonitona qualquer branca pode ser, mas mulata da competência de Dionísia tem poucas no mundo, acho que nem meia-dúzia e isso escarafunchando muito…

- Uma que teve filho recentemente…

- Pois então é ela mesmo, tá de menino novo, nem voltou ainda a trabalhar…

Pela primeira vez, dona Flor abriu a boca, querendo saber:

- Em que ela se ocupa?

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