DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
Cresce a voz na rua, vai despertando dona Flor, mas o sonho prossegue num milagre, a canção se aproxima, sonho ou realidade? Já se levanta o povo, acorre a ouvir. Dona Flor enfia um robe às pressas, chega à janela.
Lá estão eles: Vadinho, Mirandão, Edgard Cocô, o sublime Carlinhos Mascarenhas, o pálido Jenner Augusto dos cabarés de Aracaju. E entre eles, o violão ao peito, a voz desatada, Sílvio a cantar para dona Flor:
… ao som da melodia apaixonada,
nas cordas do sonoro violão…
Houvera a serenata, a rua em alvoroço; houvera o almoço no domingo, falado até nas gazetas; na segunda, Sílvio veio preparar o jantar, trouxe de um tudo, vestiu um avental. Foi para a cozinha, e sabia cozinhar. Nos outros dias não tinha hora de aparecer, entrava e saía, juntos foram todos assistir a uma capoeira. Mas, de tudo quanto aconteceu naquela semana, nada se comparou à festa popular de terça-feira, véspera da partida de Sílvio para o Recife. Na noite de lua cheia, no alto do palanque no Campo Grande, ele cantou para a multidão, o povo reunido na praça.
Dona Flor nem perguntava a Vadinho se iria: ele não largava o amigo. Apenas lhe comunicou a sua decisão de também assistir, aproveitando a companhia de dona Norma e de seu Sampaio, pois até o comerciante de sapatos se erguera do seu eterno cansaço para comparecer à seresta.
Qual não foi, assim, a surpresa de dona Flor quando após o jantar, o táxi do Cigano desembarcou Vadinho, Sílvio e Mirandão na porta de casa, vinham buscá-la. E a “comadre”?, perguntou ela a Mirandão. Fora antes com a criançada, já devia estar no largo. Enquanto dona Flor terminava de aprontar-se, eles providenciaram uma batida de limão.
Ficaram sentados no palanque, ela e Vadinho, em cadeiras reservadas para as autoridades. O Governador não comparecera, preso ao leito com uma gripe, mas instalaram um alto-falante nas imediações do Palácio, assim Sua Excelência e a Excelentíssima poderiam ouvir. Nas cadeiras acomodavam-se o Prefeito da Cidade e sua esposa, o Chefe de Polícia com a mãe e as irmãs, o Director de Educação, os Comandantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, com seus familiares, doutor Jorge Calmon e outros fidalgos. Dona Flor, em meio a toda aquela lordeza, sorriu para Vadinho:
- Só tenho pena de mamãe não ver isso… Nem havia de acreditar. Nós dois sentados com o governo…
Vadinho riu seu riso zombeteiro, lhe disse:
- Tua mãe é uma velha coroca, não sabe que na vida só vale o amor e a amizade. O resto é tudo pinóia, é tudo presunção, não paga a pena…
De repente, um acorde ao violão e todo o alegre rumor extinguiu-se na praça. A voz de Sílvio Caldas, a lua cheia, as estrelas e a brisa, as árvores do parque, o silêncio do povo: dona Flor cerrou os olhos, encostou a cabeça no ombro do marido.
Como viver sem ele, como atravessar esse deserto, transpor esse crepúsculo, erguer-se desse pântano? Sem ele tudo é pinóia, presunção, não paga para viver.
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 97
Cresce a voz na rua, vai despertando dona Flor, mas o sonho prossegue num milagre, a canção se aproxima, sonho ou realidade? Já se levanta o povo, acorre a ouvir. Dona Flor enfia um robe às pressas, chega à janela.
Lá estão eles: Vadinho, Mirandão, Edgard Cocô, o sublime Carlinhos Mascarenhas, o pálido Jenner Augusto dos cabarés de Aracaju. E entre eles, o violão ao peito, a voz desatada, Sílvio a cantar para dona Flor:
… ao som da melodia apaixonada,
nas cordas do sonoro violão…
Houvera a serenata, a rua em alvoroço; houvera o almoço no domingo, falado até nas gazetas; na segunda, Sílvio veio preparar o jantar, trouxe de um tudo, vestiu um avental. Foi para a cozinha, e sabia cozinhar. Nos outros dias não tinha hora de aparecer, entrava e saía, juntos foram todos assistir a uma capoeira. Mas, de tudo quanto aconteceu naquela semana, nada se comparou à festa popular de terça-feira, véspera da partida de Sílvio para o Recife. Na noite de lua cheia, no alto do palanque no Campo Grande, ele cantou para a multidão, o povo reunido na praça.
Dona Flor nem perguntava a Vadinho se iria: ele não largava o amigo. Apenas lhe comunicou a sua decisão de também assistir, aproveitando a companhia de dona Norma e de seu Sampaio, pois até o comerciante de sapatos se erguera do seu eterno cansaço para comparecer à seresta.
Qual não foi, assim, a surpresa de dona Flor quando após o jantar, o táxi do Cigano desembarcou Vadinho, Sílvio e Mirandão na porta de casa, vinham buscá-la. E a “comadre”?, perguntou ela a Mirandão. Fora antes com a criançada, já devia estar no largo. Enquanto dona Flor terminava de aprontar-se, eles providenciaram uma batida de limão.
Ficaram sentados no palanque, ela e Vadinho, em cadeiras reservadas para as autoridades. O Governador não comparecera, preso ao leito com uma gripe, mas instalaram um alto-falante nas imediações do Palácio, assim Sua Excelência e a Excelentíssima poderiam ouvir. Nas cadeiras acomodavam-se o Prefeito da Cidade e sua esposa, o Chefe de Polícia com a mãe e as irmãs, o Director de Educação, os Comandantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, com seus familiares, doutor Jorge Calmon e outros fidalgos. Dona Flor, em meio a toda aquela lordeza, sorriu para Vadinho:
- Só tenho pena de mamãe não ver isso… Nem havia de acreditar. Nós dois sentados com o governo…
Vadinho riu seu riso zombeteiro, lhe disse:
- Tua mãe é uma velha coroca, não sabe que na vida só vale o amor e a amizade. O resto é tudo pinóia, é tudo presunção, não paga a pena…
De repente, um acorde ao violão e todo o alegre rumor extinguiu-se na praça. A voz de Sílvio Caldas, a lua cheia, as estrelas e a brisa, as árvores do parque, o silêncio do povo: dona Flor cerrou os olhos, encostou a cabeça no ombro do marido.
Como viver sem ele, como atravessar esse deserto, transpor esse crepúsculo, erguer-se desse pântano? Sem ele tudo é pinóia, presunção, não paga para viver.
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