quarta-feira, abril 21, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 99



- Não sei como fazer. Só tenho descanso quando me lembro dele…

- Pois junte tudo quanto é lembrança do xará, junte o carrego dele e enterre no fundo do coração. Junte tudo, o bom e o ruim, enterre o carrego todo e depois deite e durma seu sono sossegada…

Sobraçando livros, à frescata num vaporoso vestido de verão a exibir-lhe as sardas e a saúde, dona Gisa, sua conselheira, a repreendia:

- Que é isso? Quanto tempo vai durar essa exibição?

- Que posso fazer? Não é que eu queira…

- E sua força de vontade? Diga a si mesma: amanhã começo vida nova; feche a porta do passado, volte a viver.

O coro das comadres num cantochão:

- Agora, sem o peste do marido, é que ela pode viver feliz… Devia dar graças a Deus…

Dom Clemente Nigra no pátio do convento sobre o imenso mar de óleo verde-azul tocou-lhe a face triste contemplando seu luto fechado e lancinante, magra e entregue. Dona Flor viera encomendar a missa do mês.

- Minha filha – sussurrou o frade de marfim – que desespero é esse? Vadinho era tão alegre gostava tanto de rir… Sempre que eu o via me dava conta que o pior pecado mortal é a tristeza, o único que ofende a vida. O que ele diria se lhe visse assim? Não havia de gostar, ele não gostava nada que fosse triste.

Se você quiser ser fiel à memória de Vadinho, enfrente a vida com alegria…

As carpideiras em bando pelo bairro:

- Agora, sim, ela pode ter alegria, pois o cão foi para os infernos.

As figuras moviam-se ao fundo quarto como um balé: dona Rozilda, dona Dinorá, as beatas com seu aftim de sacristia, e dona Norma, dona Gisa, dom Clemente, Dionísia de Oxóssi a sorrir com seu menino:

- Enterre o carrego do xará no coração, comadre e se deite e durma.

Mas seu corpo não se conforma e o reclama. Ela raciocina, pensa, ouve as amigas, dá-lhes razão, é preciso por um cobro a esse morrer todos os dias e cada vez um pouco mais. Seu corpo, porém, não se conforma e o exige em desespero. Só a memória o devolve e ali o traz, a Vadinho, com seu atrevido bigode, seu riso de zombaria, sua insolência, as palavras feias e tão lindas, sua mata de pelos e a marca da navalha. Quer partir com ele, retomar seu braço, irritar-se com os malfeitos, e eram tantos!, gemer impúdica, desfalecente, no beijo. Mas, ah!, precisa de reagir e viver, abrir sua casa e trancados lábios, arejar as salas e o coração, tomar de carrego de Vadinho, de todo ele, e enterrá-lo fundo. Quem sabe, assim aplacará o desejo. Uma viúva, ela sempre ouvira dizer, deve ser insensível a tais apetites, a esses pecaminosos pensamentos, deve ficar de desejo murcho, seca flor inútil. Desejo de viúva vai para a cova no caixão do finado, se enterra com ele. Só mulher muito safada, sem amor por seu
marido, ainda pode pensar nessas sem vergonhices, coisa mais feia.

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