DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 118
Tantos quefazeres, um mundo de coisas, o dia afanoso: por vezes, à noite, ao despir-se e estender-se no leito de dormir, sentia-se realmente fatigada, necessitando de sono repousante. Dormia de imediato, apenas pousava a cabeça no travesseiro.
Se era assim tão repleta sua vida, como explicar a constante sensação de vazio, com se tudo aquilo, aquela actividade que a toma, domina e movimenta, fosse inútil e vã? Se em sua modéstia e parcimónia tinha o suficiente para viver com decência e Aida esconder, num hábito antigo, algumas sobras, se tranquila sua vida, e mesmo alegre, por que então vazia e vã?
Nas ruas em torno sobravam as mexeriqueiras velhas e jovens, pois para exercer tal ofício não se exige documento de idade. Dona Dinorá era a primeira dessas xeretas; em sua actividade tamanhos sucessos obteve a ponto de lhe ser atribuída fama de vidente.
Já foi nesta crónica dona Dinorá vista em acção, em lamúrias, em denúncias, em enredos, sem que, no entanto, dela própria se tratasse mais longamente, permanecendo até agora quase anónima, como se fosse tão só uma intrigante comum na roda das beatas. Talvez porque a insólita presença de dona Rozilda, por fim e felizmente em exílio em Recôncavo, não desse vez às concorrentes. Mas sempre é tempo de corrigir um erro, de reparar uma injustiça.
Para muitos, passava dona Dinorá, por viúva do comendador Pedro Ortega, rico comerciante espanhol desencarnado uns dez anos antes. Em verdade, nunca fora casada e donzela o fora pouco tempo; apenas púbere, arribara de casa para dar início a movida e de certa maneira brilhante existência, crónica picante. No entanto – benza-a Deus – ninguém mais moralista e ciosa dos bons costumes desde o feliz encontro com o galego quando, tendo passado dos quarenta e cinco, dona Dinorá olhava o futuro com apreensão: um medo pânico da pobreza e o hábito do conforto.
Sem ter sido jamais realmente bonita, certa graça fescenina, responsável por seu sucesso junto aos homens, diluía-se com os anos e as rugas. Dera então a incrível sorte do comendador, “bilhete premiado com o prémio grosso”, como dona Dinorá confidenciava às amigas na época. O espanhol oferecera-lhe respeitabilidade e garantias, sem falar na casinha das vizinhanças do Largo Dois de Julho onde a instalou.
Quem sabe devido ao medo de ver-se velha e pobre, à ameaça de prostituição de porta aberta, dona Dinorá, ao amparo do comerciante, converteu-se rápido no oposto do que havia sido: em respeitável matrona, guardiã da moral.
Tendência a acentuar-se após a morte de Pedro Ortega e cada vez mais. Quando ele partiu, entre discursos e coroas mortuárias, a antiga mundana passava dos cinquenta anos – cinquenta e três para ser exacto – e, nos oito de amancebamento, criara apego à virtude e à vida familiar.
O probo baluarte das classes conservadoras, grato à amante pela fidelidade e pela revelação de um mundo de ignorados prazeres (que besta fora!, perdera os melhores anos da sua vida ao balcão da pastelaria e no corpo chocho e ignorante da santa e agre sua esposa), deixou-lhe em testamento – além da casa própria, ninho dos pecaminosos amores – acções e obrigações do Estado, renda módica, bastante, porém, para assegurar-lhe velhice sem sustos, por inteiro ao serviço da difamação e da intriga.
Se era assim tão repleta sua vida, como explicar a constante sensação de vazio, com se tudo aquilo, aquela actividade que a toma, domina e movimenta, fosse inútil e vã? Se em sua modéstia e parcimónia tinha o suficiente para viver com decência e Aida esconder, num hábito antigo, algumas sobras, se tranquila sua vida, e mesmo alegre, por que então vazia e vã?
Nas ruas em torno sobravam as mexeriqueiras velhas e jovens, pois para exercer tal ofício não se exige documento de idade. Dona Dinorá era a primeira dessas xeretas; em sua actividade tamanhos sucessos obteve a ponto de lhe ser atribuída fama de vidente.
Já foi nesta crónica dona Dinorá vista em acção, em lamúrias, em denúncias, em enredos, sem que, no entanto, dela própria se tratasse mais longamente, permanecendo até agora quase anónima, como se fosse tão só uma intrigante comum na roda das beatas. Talvez porque a insólita presença de dona Rozilda, por fim e felizmente em exílio em Recôncavo, não desse vez às concorrentes. Mas sempre é tempo de corrigir um erro, de reparar uma injustiça.
Para muitos, passava dona Dinorá, por viúva do comendador Pedro Ortega, rico comerciante espanhol desencarnado uns dez anos antes. Em verdade, nunca fora casada e donzela o fora pouco tempo; apenas púbere, arribara de casa para dar início a movida e de certa maneira brilhante existência, crónica picante. No entanto – benza-a Deus – ninguém mais moralista e ciosa dos bons costumes desde o feliz encontro com o galego quando, tendo passado dos quarenta e cinco, dona Dinorá olhava o futuro com apreensão: um medo pânico da pobreza e o hábito do conforto.
Sem ter sido jamais realmente bonita, certa graça fescenina, responsável por seu sucesso junto aos homens, diluía-se com os anos e as rugas. Dera então a incrível sorte do comendador, “bilhete premiado com o prémio grosso”, como dona Dinorá confidenciava às amigas na época. O espanhol oferecera-lhe respeitabilidade e garantias, sem falar na casinha das vizinhanças do Largo Dois de Julho onde a instalou.
Quem sabe devido ao medo de ver-se velha e pobre, à ameaça de prostituição de porta aberta, dona Dinorá, ao amparo do comerciante, converteu-se rápido no oposto do que havia sido: em respeitável matrona, guardiã da moral.
Tendência a acentuar-se após a morte de Pedro Ortega e cada vez mais. Quando ele partiu, entre discursos e coroas mortuárias, a antiga mundana passava dos cinquenta anos – cinquenta e três para ser exacto – e, nos oito de amancebamento, criara apego à virtude e à vida familiar.
O probo baluarte das classes conservadoras, grato à amante pela fidelidade e pela revelação de um mundo de ignorados prazeres (que besta fora!, perdera os melhores anos da sua vida ao balcão da pastelaria e no corpo chocho e ignorante da santa e agre sua esposa), deixou-lhe em testamento – além da casa própria, ninho dos pecaminosos amores – acções e obrigações do Estado, renda módica, bastante, porém, para assegurar-lhe velhice sem sustos, por inteiro ao serviço da difamação e da intriga.
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