DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
Um dia não pôde mais e se abriu com dona Norma: “por fora honesta continência por dentro poço de excrementos”. O desejo nascia dela, de seu peito, do silêncio, do devaneio, da solidão, do sonho. Sem motivo, sem ponto de partida, sem semente nem raiz. Nascendo dela – “de minha ruindade mesmo, Norminha” – de seu corpo em febre, crescendo naquela carne estrumada de ausência, de penúrias, de maldições; ânsia plantada no esterco de sua danação:
- Estou danada, Norminha; nem quero pensar, e penso; não quero ver, e vejo; não quero sonhar, e sonho a noite inteira. Tudo contra minha vontade, contra meu querer. Meu corpo não me obedece, Norminha, o excomungado.
A brochura ioga lida e relida, já lhe explicara tratar-se da “crucial batalha entre a matéria imunda e o puro espírito”, travando-se em seu íntimo, coisa medonha. A maldita matéria de seu corpo partindo em fúria e em danação contra o recato de seu espírito, rompendo a placidez de sua vida, seu equilíbrio. Deixara de existir qualquer acordo entre sua vontade e seus instintos. Tudo confuso: de um lado uma viúva, exemplo de dignidade, do outro uma fêmea jovem e necessitada. Caso grave, exigindo, na receita do folheto, “forte concentração do pensamento e exercícios diários”.
Nada resolveram a mística literatura e os penosos exercícios, ainda mais penosos para dona Flor, gordota de corpo e rechonchuda. Para ver se obtinha o elegíaco equilíbrio prometido, sujeitara-se durante umas duas semanas, às contorções mais absurdas. Dona Dagmar, a seu pedido, repetira-lhe várias aulas e dona Flor submeteu-se com paciência e esperança. Dona Dagmar não regateava elogios aos métodos iogas, formidável, ela já emagrecera quatro quilos. Com dona Flor, total fracasso: nem sequer emagrecera. Em vez de calma e equilíbrio, obteve apenas cansaço, corpo dorido e nem por isso menos ávido e audaz em sua urgente precisão.
Tampouco a satisfizeram as brilhantes análises científicas de dona Gisa, com a boca cheia de nomes ininteligíveis, bolodório para doutor de faculdade: complexos, libido, subconsciente, recalques, tabu:
- Para você, Flor, viúva cheia de recalques e complexos, o sexo é tabu. Tabu ou não tabu, consciente, inconsciente ou subconsciente, por efeito de recalque e de complexo, ou por simples desejo de mulher, era aquele desespero noite adentro, sonhos eróticos a arrastá-la em bacanal, não lhe sendo a conversa da gringa da menor utilidade. Pois, se fosse atrás do seu latim, sairia a rua afora a fornicar com o primeiro macho que encontrasse, destruindo à bruta recalques e complexos, estrangulando numa cama de castelo o mísero tabu para sempre desonradas, ela e a memória do defunto.
Dona Norma era a boa sabedoria popular, a experiência vivida, a compreensão humana. Ia direita ao assunto:
- Isso é falta de homem, minha santa. Você é moça, não sofre de doença, não é capada que eu saiba, que é que está querendo? Mesmo as freiras se casam para suportar a castidade, se casam com Cristo, e ainda assim tem umas que botam chifres em Jesus – e, sorrindo ao recordar: - Você lembra daquela freira do Desterro que emprenhou do padeiro e terminou artista de teatro? Faz tempo, não se lembra? Não se falava noutra coisa…
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 160
Um dia não pôde mais e se abriu com dona Norma: “por fora honesta continência por dentro poço de excrementos”. O desejo nascia dela, de seu peito, do silêncio, do devaneio, da solidão, do sonho. Sem motivo, sem ponto de partida, sem semente nem raiz. Nascendo dela – “de minha ruindade mesmo, Norminha” – de seu corpo em febre, crescendo naquela carne estrumada de ausência, de penúrias, de maldições; ânsia plantada no esterco de sua danação:
- Estou danada, Norminha; nem quero pensar, e penso; não quero ver, e vejo; não quero sonhar, e sonho a noite inteira. Tudo contra minha vontade, contra meu querer. Meu corpo não me obedece, Norminha, o excomungado.
A brochura ioga lida e relida, já lhe explicara tratar-se da “crucial batalha entre a matéria imunda e o puro espírito”, travando-se em seu íntimo, coisa medonha. A maldita matéria de seu corpo partindo em fúria e em danação contra o recato de seu espírito, rompendo a placidez de sua vida, seu equilíbrio. Deixara de existir qualquer acordo entre sua vontade e seus instintos. Tudo confuso: de um lado uma viúva, exemplo de dignidade, do outro uma fêmea jovem e necessitada. Caso grave, exigindo, na receita do folheto, “forte concentração do pensamento e exercícios diários”.
Nada resolveram a mística literatura e os penosos exercícios, ainda mais penosos para dona Flor, gordota de corpo e rechonchuda. Para ver se obtinha o elegíaco equilíbrio prometido, sujeitara-se durante umas duas semanas, às contorções mais absurdas. Dona Dagmar, a seu pedido, repetira-lhe várias aulas e dona Flor submeteu-se com paciência e esperança. Dona Dagmar não regateava elogios aos métodos iogas, formidável, ela já emagrecera quatro quilos. Com dona Flor, total fracasso: nem sequer emagrecera. Em vez de calma e equilíbrio, obteve apenas cansaço, corpo dorido e nem por isso menos ávido e audaz em sua urgente precisão.
Tampouco a satisfizeram as brilhantes análises científicas de dona Gisa, com a boca cheia de nomes ininteligíveis, bolodório para doutor de faculdade: complexos, libido, subconsciente, recalques, tabu:
- Para você, Flor, viúva cheia de recalques e complexos, o sexo é tabu. Tabu ou não tabu, consciente, inconsciente ou subconsciente, por efeito de recalque e de complexo, ou por simples desejo de mulher, era aquele desespero noite adentro, sonhos eróticos a arrastá-la em bacanal, não lhe sendo a conversa da gringa da menor utilidade. Pois, se fosse atrás do seu latim, sairia a rua afora a fornicar com o primeiro macho que encontrasse, destruindo à bruta recalques e complexos, estrangulando numa cama de castelo o mísero tabu para sempre desonradas, ela e a memória do defunto.
Dona Norma era a boa sabedoria popular, a experiência vivida, a compreensão humana. Ia direita ao assunto:
- Isso é falta de homem, minha santa. Você é moça, não sofre de doença, não é capada que eu saiba, que é que está querendo? Mesmo as freiras se casam para suportar a castidade, se casam com Cristo, e ainda assim tem umas que botam chifres em Jesus – e, sorrindo ao recordar: - Você lembra daquela freira do Desterro que emprenhou do padeiro e terminou artista de teatro? Faz tempo, não se lembra? Não se falava noutra coisa…
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