sábado, julho 03, 2010


DONA

FLOR

E SEUS

DOIS

MARIDOS


EPISÓDIO Nº 162


- Hei de me rir, de dizer: “venha dormir comigo…?” Prefiro morrer. Só fui para a cama com o meu marido…

- Meu marido morreu…

- Morreu o primeiro… Nada impede que você tenha outro. Você é moça, Flor, nem chegou aos trinta…

- Vou completar no fim do ano…

- Menina ainda… Para o que você tem, que não é doença nem maluqueira, só existem dois remédios, minha filha, casamento ou descaração. Ou então entrar de freira num convento. Nesse caso tome cuidado com os padeiros, leiteiros e jardineiros, e com os padres, para não cornear deus Nosso Senhor.

- Não brinque, Norminha…

- Não estou brincando, Flor. Se você fosse descarada, podia continuar viúva, vestida de preto: ia dando por aí, a um e a outro, se divertindo, se desesperando. Mas, como você não é nada disso, é séria mesmo, então tem de casar, não tem outra coisa a fazer…

Desejo de viúva Norminha, vai no carrego do defunto, viúva não tem direito nem a memória de cama, a recordar noites de vadiação, quanto mais a ilusões de noivado e casamento, de outro marido. Tudo isso não passa de insulto à memória e à honra do finado.

Desejo de viúva é tão vivo quanto o de donzela ou de casada, se não for mais, sua tola; assim lhe respondia enérgica dona Norma. Novo casamento não é nenhum insulto à honra do defunto; qualquer mulher pode prezar a memória de marido morto, e ser feliz, ao mesmo tempo, em companhia de um segundo esposo. Sobretudo, ela, dona Flor, cujo primeiro casamento fora tão insólito e nem sempre alegre, para não dizer pior.

Conversa longa e benéfica, as duas amigas a sós, numa intimidade de estima verdadeira, duas irmãs não se entenderiam tanto, dona Flor finalmente convencida. Talvez já estivesse antes, no cruel debate consigo mesma, não o confessaria jamais, no entanto, se dona Norma não lhe arrancasse os véus do preconceito, de um falso luto apodrecido no desejo.

- Mas, Norminha, que adianta eu ficar de acordo? Quem vai me querer de noiva? Ninguém quer sobejo de defunto, eu não vou sair me oferecendo… Vou morrer nessa consumação.

- Arranque a tabuleta e eu não dou seis meses…

- Que tabuleta?

- Essa que você leva no rosto: “Sou viúva para sempre, morri para a vida e para o casamento”. Arranque, volte a rir, a ser igual a todo o mundo e aposto que em menos de seis meses…

Essa conversa teve lugar uns poucos dias depois do Carnaval que naquele ano caíra muito tarde, já em Março, mais ou menos um mês após o primeiro aniversário da viuvez de dona flor.

Na manhã daquele fúnebre aniversário, dona Flor dirigiu-se ao cemitério, com lágrimas e com flores, demorando-se junto à campa longo tempo, como se ali encontrasse alívio e calma. Foi um dos seus dias mais tranquilos em todo o confuso tempo de viuvez, sentindo-se ela apenas triste, com saudades do falecido. Uma saudade funda e confortante.

Já os dias de Carnaval lhe foram mais penosos. Nas músicas e nas canções muitas das quais as mesmas do Carnaval anterior, vinham-lhe as lembranças do terrível domingo. Ao debruçar-se na janela para assistir à passagem de um bloco ou de um rancho, de um Zé-pereira, de um zabumba ou de afoxê, recordava o morto no chão do Largo Dois de Julho, entre as serpentinas e confetes, vestido de baiana.

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