quarta-feira, julho 07, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 165




O farmacêutico, senhor de ânimo pacato e maneiras comedidas, apenas viu as amigas, abandonou às pressas a posição cómoda, a atitude pachola, afastando-se do balcão, erguendo-se numa postura quase rígida para cumprimentá-las, bom dia sonoro e cordial. Detalhe importante: extraindo um pente do bolso do colete, com ele ajeitou os cabelos negros, aliás sem necessidade, pois o penteado resplandecia íntegro sob camadas de brilhantina. Desaparecera o ânimo pacato, o droguista em excitação de adolescente. “Eu vi a hora dele vestir o paletó só para nos cumprimentar”, disse dona Êmina a perguntar-se a causa de tanto afã e zelo.

De imaculada camisa branca e colete cinza, grossa corrente de ouro de bolso a bolso numa curva de efeito, a prender respeitável patacão também de ouro, herança paterna, as calças de perfeito zinco, os sapatos no capricho do lustre, o anel de grau, um tipão, alto e simpático. Curvou-se para saudar o grupo.

Amáveis, as amigas responderam, era o farmacêutico personalidade de vulto nas redondezas, bem-visto e benquisto. Segundo ainda o depoimento de dona Êmina – rico em minúcias – como se constata – os olhos do doutor Teodoro enxergavam apenas dona Flor, cegos para as demais; olhar, senão de concupiscência, pelo menos de cobiça. “Te devorava com os olhos, te comia”, eis como a hábil observadora definiu para dona Flor a expressão precisa daquele olhar.

Quando não mais as viu de dentro do balcão, passou à frente; depois veio para a calçada do estabelecimento, e por fim, após breve indecisão e uma advertência aos empregados, partira rua afora no rastro da festiva companhia.

Situou-se próxima às amigas, nas imediações do grande relógio de São Pedro, a marombar. Puxando a corrente de ouro, sorriu satisfeito da precisão suiça de seu cronómetro. Dona Norma e dona Amélia para não perderem detalhe do trote, subiram sobre um banco do pequeno jardim; as demais ficaram em redor nas pontas dos pés. De onde estava, meio escondido pela base do relógio, doutor Teodoro seguia devoto cada movimento de dona Flor.

Mantendo-o sob controle, dona Êmina constatou quase nada ter visto o farmacêutico do divertido trote: os caloiros pintados de zarcão, dançando uma dança macabra, os veteranos exigindo cerveja e gasosa nos bares e armazéns. Se o doutor Teodoro sorria, era em apoio ao riso de dona Flor, seus aplausos eram réplica aos da viúva, a mirá-la embevecido. Dona Êmina puxou a saia de dona Norma, a aplaudir em cima do banco disparates de um estudante montado num jegue (o animal aproveitava a parada para mastigar restos de lixo na sujeira da rua). A princípio dona Norma não entendeu a palpitante mensagem dos olhos e dos dedos da amiga. Finalmente, localizando o farmacêutico em mangas de camisa e em êxtase, acompanhou-lhe, pasma, o alvoroço.

- Menina… - disse ela. – Que coisa…

Dona Amélia e dona Maria do Carmo logo tomaram conhecimento da surpreendente atitude do doutor Teodoro: meio escondido por trás do relógio, brechando dona Flor. Só dona Gisa manteve-se distante, entregue à leitura dos cartazes do trote; segundo ela, as manifestações estudantis continham precioso material para o estudo da alma colectiva. Dona Gisa não perdia ocasião para estudar, nascera com a sina de tudo saber e de tudo explicar. Para as outras, no
entanto, material mais precioso e elucidativo eram os estranhos modos do boticário.

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