sábado, julho 17, 2010


DONA
FOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 174



Metia-se em empresa de vulto, comprava um matrimónio. Atravessou uns tempos ruins, ao começo, resgatando promissórias a juros altos. Foi-lhe de valia naquelas aperturas o banqueiro Celestino a quem o recomendara outro membro da orquestra de amadores, doutor Venceslau Pires da Veiga, quase tão bom no violino quanto no bisturi famoso. O português sentiu logo o homem sério: tinha olho e olfacto, não se enganava nunca. Abriu para doutor Teodoro a possibilidade de reforma de títulos, facilitando-lhe a vida.

Homem de módicas despesas (seus luxos resumiam-se em enfermeira competente para a mãe, no fagote e na hebdomadária visita a Tavinha Manemolência), com o apoio do banqueiro, transpôs o farmacêutico sem maiores riscos aqueles primeiros tempos do Cabeça, ainda endividado. Um ano antes de engraçar-se por dona Flor, pagara, com um suspiro de alívio, a última letra.

Era agora sócio não da pequena farmácia de Itapagipe e, sim, de drogaria no centro da cidade. E, se bem sócio menor, possuindo apenas duas quintas partes do capital, mandava e desmandava no negócio, pois os três irmãos não se entendiam e raramente punham os pés na Científica (a não ser para pedir avanço sobre a retirada).

Ao demais, farmacêutico a dar título ao estabelecimento, cabia-lhe por isso e pelo seu trabalho diário uma participação maior nos lucros. Tranquilo à espera de mais cedo ou mais tarde comprar as outras quotas quando os irmãos, caterva de preguiçosos e inúteis, acabassem de pôr fora, na boa vida, os demais bens da herança, doutor Teodoro ganhara o respeito e a estima do bairro, inclusive das comadres.

Quando surgira no Cabeça, irrepreensível em sua roupa escura, sério e competente, solteirão andando para os quarenta, as comadres, apenas o viram, puseram-se em acção. Logo vasculharam sua intimidade, pesaram sua ciência – “que não mais delicada na agulha da injeção, receita melhor que muito médico” – passando a pente fino os detalhes de sua vida: dos estudos pagos com o trabalho da mãe à frente do armarinho em Jequié até os solos de fagote, arte e prazer do celibatário, com lágrimas no capítulo dramático do derrame quando doutor Teodoro jurara não amar mulher alguma para melhor atender à paralítica.

Dona Dinorá, escrupulosa e exacta, pertinaz em busca de minúcias, estendeu seu campo de pesquisas até Itapagipe, onde entrevistou a própria enfermeira a conduzir a velhota no carrinho de aleijada. Aquela dedicação de filho a merecer sonata, melodia e poema impôs-se à maledicência das comadres, que deixaram o boticário em paz com seus hábitos austeros e sua mãe enferma.

Tão acostumada com o solene compromisso filial, nem se deram conta da profunda mudança qualitativa ocorrida meses antes, quando a mãe do doutor Teodoro finou-se em sua cadeira de rodas, na qual vivera por mais de vinte anos: livre o filho da fatal promessa, apto para o casamento. Mas para as comadres o farmacêutico não existia como motivo de fuxicos e cochichos. Futricavam de todo o mundo menos dele, “homem direito é doutor Teodoro”.

Qual o espanto, pois, qual o assombro, o fim do mundo, quando estourou a notícia do interesse do droguista pela professora de culinária. Ah!, traidor! As comadres em formação ocuparam todas
as posições estratégicas entre a drogaria Científica e a Escola de Culinária Sabor e Arte.

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