sábado, agosto 14, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 198


“Fulgem as ideias no esplendor das frases cintilantes”, segundo ele, “nesses torneios de subida educação, nesse diálogo de privilegiados intelectos”. Enquanto isso dona Flor, no círculo das esposas, discorria sobre costura e culinária ou comentava os últimos crimes saídos nos jornais.

Para o doutor Teodoro, as visitas ao doutor Luís Henrique eram o supra-sumo, enquanto as preferências de dona Flor iam para as noites no palacete do Garcia, o bangalô de dona Maga Paternostro, a ricaça, figura por excelência da elite, sua ex-aluna. Ali, encontrava-se dona Flor no trato e no requinte de senhoras da mais alta pabulagem, a discutir de modas, de protocolos, de acontecimentos sociais, com agradáveis incursões pela vida alheia, mas não a vida de qualquer vizinha e, sim, os podres da elite, da fidalguia e da lordeza, e era cada história, cada sujeira, nem te digo! Uma podridão de primeira qualidade, toda ela, sem excepção.

Dos hábitos antigos, vindos do primeiro casamento, foi mantido o almoço matinal no Rio Vermelho com os tios, e nenhum outro (também nos tempos do primeiro casamento não tinham quase hábitos, só a barafunda e o imprevisto).

Modificaram-se os costumes, a vida não só adquirindo movimentação como estabilidade, vida plácida e amena. Vida feliz, na opinião geral da vizinhança e no sorrir de dona Flor, concorde.

Às quartas e aos sábados, às dez da noite, minuto mais, minuto menos, doutor Teodoro tomava da esposa em honesto ardor e em prazer constante, sendo certo o bis aos sábados e facultativo às quartas-feiras.

Dona Flor, na desordem de certos anteriores, a princípio estranhou a discrição a envolver e a comandar a porfia de amor no leito de ferro sobre o novo (e espectacular) colchão de molas. Mas logo seu pudor congénito e o recato próprio à sua natureza acomodaram suas necessidades de fêmea, seus anseios de mulher, à maneira conveniente e pontual, podendo-se quase dizer respeitosa e distinta, de cobri-la o doutor, sob o abrigo dos lençóis mas com desejo firme e estrovenga em riste.

Num leito de esposos (na opinião do doutor Teodoro), o desejo não impede o recato, o amor não se opõe à pudicícia, amor e desejo feitos de matérias puras, mesmo em sua secreta intimidade conjugal.

Às quartas e aos sábados, à mesma hora invariavelmente, dona Flor vislumbrava os discretos e repetidos movimentos do esposo, nas sombras do leito. Assim, semi-erguendo-se para se pôr sobre ela, o lençol cobrindo-lhe os braços abertos e os ombros, o doutor lhe parecia um guarda-chuva branco e enorme a resguardar sua vergonha de mulher, a protegê-la mesmo naquele supremo instante de abandono. Um guarda-chuva, visão mais sem graça, imagem inibidora, uma pinóia.

Cerrando os olhos para não ver, então o via dona Flor, a seu Teodoro, como pássaro de asas imensas e potente garra, águia ou condor em voo rasante sobre ela para tomá-la e erguê-la, nos ares possuí-la. Abria-se dona Flor ao pouso da ave de rapina. Ao sentir-se dela penetrada, garra desmedida em suas entranhas sumarentas, presa e liberta, com ela se alçava num céu de bronze em gozo repartido.

Só não de todo casto gozo porque dona Flor, ao desatar-se, desatava também o pensamento e lá se ia.

Eram assim as noites de amor desses bons esposos, com seguro bis aos
sábados, facultativo
às quartas-feiras.

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