terça-feira, novembro 30, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
Episódio Nº 282


Zulmira tão pouco tinha dúvidas: era coisa-feita, o demónio solto. Ela não lhe contara antes para não lhe aumentar as preocupações, já tendo Pequito tantos motivos de aborrecimento: no Pálace, na véspera, na hora da suspensão do jogo, como já anteriormente sucedera, um invisível lhe tocara nos peitos e lhe fizera cócegas. Não contente – que horror, meu Deus! – por suas saias se meteu e lhe beliscou a bunda:

- Veja, Pequito… Espie…

Suspendeu a bata. Por baixo reluzia a pele cor de cobre, onde ele pôde ver, a marca dos dedos de Vadinho, definitiva prova do ignoto:

- Acidente! – disse o calabrês e, fazendo das fraquezas forças, naquele obscuro mistério mergulhou.


Insensato, insolente! Vadinho sempre fora assim e não mudara nos anos de ausência:

- De noite venho lhe tirar da cama. Me espere…

Como se dona Flor fosse a última das marafonas, tão dissoluta a ponto de se entregar ao deboche diante do esposo adormecido. No leito de ferro, doutor Teodoro dorme o famoso sono dos justos, a nobre figura em plácido repouso, a respiração uniforme, com se roncasse ao ritmo do fagote.

Dona Flor contempla a face honrada do marido e uma onda de ternura a domina: homem melhor não existe, esposo tão perfeito. Ânimo forte, carácter impoluto, também dito adamantino, dona Flor decide romper de uma vez para sempre aquele enredo dúbio e insustentável, indigno de sua condição e honestidade.

Melhor esperar na sala, transferir para lá sua vigília, também mais seguro, não correria o risco de ver-se nos braços de Vadinho no mesmo quarto onde dorme o outro esposo (o bom e probo). Porque, escrava dos sentidos, corpo devasso, vil matéria, teme dona Flor entregar-se de repente. Já não lhe obedece sua vontade, somem suas forças apenas Vadinho surge, e se ele se aproxima, uma vertigem a toma e sua atitude fica à mercê do sedutor. Não era mais dona de seu corpo, a matéria indócil não mais obedecia ao seu espírito, e, sim, ao desejo de Vadinho.

Ainda não se dera, era bem verdade, mas talvez porque nos últimos dias Vadinho quase não se deixara ver, outra vez entregue à jogatina, à vida airada, sumido.

Assim naquela noite, fora tão incisivo, tão categórico: “me espere, sem falta me espere, venho lhe buscar na cama”. Não lhe tinha sequer consideração, prometia vir e se deixava ficar no jogo. Se não estivesse em casa de mulheres. Dona Flor anda pela sala, abre a janela, espia a rua, conta os minutos.

Tantas juras de amor, proclamada paixão, palavras mentirosas. Dona Flor ali sozinha, a esperá-lo e ele incapaz de lhe sacrificar uma só jogada. Talvez ainda venha, após a derradeira bola.

O jogo, porém, já terminou. Dona Flor conhece os horários, todos os detalhes dos casinos lhe são familiares, essa espera de Vadinho se iniciara há muitos anos. Onde andará ele, qual a festa a prendê-lo, por quem trocou a promessa feita a dona Flor? Vadinho, por que assim abusas dos meus sentimentos, por que não vens, se prometeste vir e eu te espero no desprezo de meu próprio ser? Que me importam honra, decência, lar feliz, nobre marido? Só me importa tua presença, por que a anunciaste a meu desejo?

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