quarta-feira, dezembro 22, 2010

DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
AMORES


Episódio Nº 300


Exu, cabeça do finado, se pusera em contra, em pé de guerra. Dionísia dissera ao ojé para não medir despesas. Sendo caso de vida ou de morte, e com Exu em armas, de través e pelo avesso, o dinheiro não conta e corre pressa, muita pressa: sua comadre dona Flor mal se mantinha em pé. Diante de tudo isso, o próprio Asobá adiantara do seu para as despesas mais urgentes; um carneiro, duas cabras, doze galos, seis conquéns, doze metros de pano. Sem falar no resto, extensa relação escrita a lápis em papel pardo, de embrulho. Cada compra com seu custo e mais vinte-mil-réis destinados ao peji de Ossain para ele abrir os caminhos pelo mato onde se esconde Exu.

Mas, ali chegando, Dionísia encontrava dona Flor tão bem disposta, tão de si contente, até nem parecia a mesma de ontem pela tarde. Fizera mal, por acaso em ter autorizado tanta despesa?

Fizera bem, pois na véspera, a própria dona Flor assustada, ordenara todas aquelas providências. Obrigado, minha comadre, por tanto trabalho que lhe dou. Agora, no entanto, já nada importa, bem ou mal tudo se resolveu.

- O finado deixou de perturbar?

Dona Flor sorriu com embaraço e disse:

- Ou eu deixei de me assombrar. Já não preciso de mais nada.

E agora? Suspender o trabalho era impossível. Durante a noite e pela madrugada tinham feito o sacrifício de animais, e ao primeiro clarão do sol, puseram diante de cada orixá a gamela com sua comida habitual. Por todo o Domingo, à tarde e à noite, os preceitos continuariam com os orixás presentes no terreiro. Suspender, parar no meio, não prosseguir, dando o feito por não feito, impossível, comadre, em ebó de tanto axé. Das consequências fatais e imprevisíveis, do castigo cruel dos encantados, quem escaparia com vida? Nem ela própria, Dionísia, apesar de simples intermediária.

Agora era ir até ao fim. Mesmo que a comadre se considerasse livre de ameaça, o ebó era uma garantia a mais para o seu sossego. Já o dinheiro fora gasto; já haviam os orixás bebido o sangue quente dos animais na hora da matança e aceite os pedaços preferidos de sua carne ao alvorecer; já estavam cobertos com suas armas e seus emblemas, e o grito de Yansã já ressoara na floresta. Para dona Flor era a certeza de que jamais voltaria o finado a perturbá-la, amarrado para sempre à sua morte.

Dona Flor contou as cédulas, pôs um dinheirinho a mais, novamente agradeceu a Dionísia a ingrata trabalheira e quis retê-la para o almoço: galinha ao molho pardo e lombo de porco feito no conhaque, bolo de puba, manga e sapoti na sobremesa. Mas Dionísia tinha pressa de voltar para o terreiro, onde, no ronco dos atabaques, Oxóssi reclamava seu cavalo predilecto.

Nos Domingos de plantão, após o almoço (o doutor comendo às carreiras, sem sequer perceber o gosto das quitutes, na ânsia de voltar para a farmácia, entregue ao molecote dos recados), dona Flor mudava a roupa e, sem atender aos protestos do esposo, vinha fazer-lhe companhia, confortá-lo no trabalho em dia de descanso. Punha-se a seu lado no balcão, ajudando-o a despachar, toda nos trinques, numa linha e numa estica tão cutubas como se fosse de visita a dona Magá Paternostro, a milionária, ou a festa em casa do comendadora Imaculada Taveira Pires. Toda aquela elegância, toda aquela boniteza só para ele; doutor Teodoro sentia-se pago e bem pago.

Site Meter