segunda-feira, dezembro 27, 2010

DONA

FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 304


O Arcanjo São Miguel de Carvalho, envolto numa espécie de lençol, turbante na cabeça, não descreveu fisionomias nem citou nomes, mas foi positivo e imediato. Tomando as mãos de Pelancchi, fitara-lhe os olhos: no espaço sideral um inimigo cruel o perseguia, homem a quem o calabrês ofendera gravemente, desencarnado há pouco tempo. O Arcanjo logo o percebeu com seu faro angelical:

- Está de pé, bem nas suas costas.

Houve um movimento geral de recuo, e o próprio Máximo Sales, por via das dúvidas, colocou-se junto à porta.

Faz pouco que morreu?

- Sim. E a briga foi por causa de mulher… - prosseguiu o Arcanjo, tendo respirado fundo seus poderes mágicos.

Pelancchi identificou Diógenes Ribas. Tomara-lhe a esposa, mulata mais pedante, um descalabro de boniteza, manceba esplêndida e matreira. Diógenes, proprietário lesado e inconformado, exibiu punhal e ameaças. Pelancchi, já poderoso senhor da jogatina, para lhe calar a boca e a pedido da mulata – a quem Diógenes perseguia com xingos e calúnias – mandou-lhe aplicar uma surra, encarregando do trabalho uma equipa de especialistas. Ao sair da mão dos médicos, Diógenes Ribas sumiu para sempre, Pelancchi só por acaso veio a saber de sua recente e triste morte, na miséria. Quanto à mulata, pivô do drama, com o passar do tempo revelou-se insuportável. Pelancchi a trocou por uma grosa de baralhos com um suíço.

Com sua flamante espada, o arcanjo varreu Diógenes, muita prosa e pouca acção, um pobre espírito, de terceira, um cornuto. Não cobrou muito, pois não era explorador de crentes e, sim, benfeitor da humanidade, como lhes disse.

O cornuto retirou-se com seus chifres, mas o azar manteve-se cada vez maior.

Doutora Nair Sabá, médica de clínica geral e cirurgiã, diplomada com distinção e louvor pela Universidade de Júpiter, quarentona feia como a necessidade, curava enfermos com passes magnéticos. Na conjugação dos astros, e a preço conveniente, descobriu pelo menos seis inimigos de Pelancchi logo identificados sem a menor possibilidade de erro. A doutora de Júpiter liquidou os seis em prazo recorde, e, de lambugem, curou a Pelancchi de uma úlcera do duodeno e a Propalato, de pertinaz reumatismo. Só não venceu o azar do jogo.

Madame Deborah, sessentona, na opinião de Máximo não valia o dinheiro nem como espectáculo: pouco afirmativa, queixando-se de dores no ventre (grávida há mais de trinta anos, concebera e ia parir o Apocalipse), um bafo evidente de cachaça e um catarro crónico, metida nuns trapos de cigana. De sério só constatou uma tal de Carmosina, amor antigo de Pelancchi, por ele abandonada sem dó nem piedade, o rei do jogo não mantinha estrepes. Teve Madame Deborah dificuldades em despachar a tipa, mas por fim o conseguiu, ajudada por uns tragos de parati tomados de um vidro de remédio para tosse. Depois quis vender a Pelancchi palpites para o bicho, infalíveis. O azar, é claro continuou.

O único a não cobrar foi Teobaldo Príncipe de Bagdá, velhinho mirrado, todo de branco, os olhos azuis e fixos, a face de bondade, a boca de enigmas. Não quis dinheiro nem, espórtula de qualquer espécie, não revelou tampouco inimigo visível ou invisível, macho ou fêmea. Se os viu em torno ao rei do jogo ou na distância do infinito, guardou segredo. Apenas disse, com lágrimas nos olhos, tocando o ombro de Pelancchi:

- Só o Mestre do Absurdo pode lhe salvar. Só ele e mais ninguém.

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