TEREZA
BATISTA
CANSADA
DE
GUERRA
Episódio Nº 36
Comédia de enganos, segundo o meritíssimo, revestira-se a audiência de um ar de farsa onde cada um representou seu papel a contento, à excepção do autor da acção executiva, Libório das Neves, que passara de macilento a lívido, perdendo a contenção em hora imprópria. O rábula, na euforia da vitória, extravasara em retórica: ali, na sala do fórum, a inocência fora proclamada, o culpado punido, fizera-se justiça.
Valera a pena a trabalheira. A visita à venerável professora Carmelita Mendonça e a lábia gasta para convencê-la:
- Querida mestra, aqui vim lhe pedir para comparecer perante o juiz como testemunha e depor em falso…
- Depor em falso, Lulu, você está doido? Sempre com suas maluquices… Nunca menti em minha vida, não é agora que vou começar. E logo na justiça…
- Mentir para salvar a verdade e desmascarar um criminoso, para livrar da miséria uma pobre mulher viúva e trabalhadora a quem querem roubar o pouco que possui. Para evitar a miséria, essa mulher, que anda pelos seus cinquenta anos, aprendeu a ler e a escrever em dez dias… Nunca vi nada igual.
Dramático, Lulu contou a história em todos os detalhes, do princípio ao fim. A professora Carmelita, ao aposentar-se do serviço público, dedicara-se com inusitado entusiasmo ao problema da alfabetização de adultos, fazendo-se em pouco tempo autoridade citada, autora de teses e estudos sobre o assunto. Ouviu a narrativa num crescente interesse e a visão da negra curvada sobre o papel tentando obter o domínio da pena e da tinta, a ganhou para a causa de Joana das Folhas:
- Você não pode estar inventando essa história, Lulu, tem de ser verdade. Conte comigo, no dia venha me buscar, digo o que você quiser.
O juiz sabia estar Lulu contra-atacando com as mesmas armas usadas por Libório, a mentira e o falso testemunho, ao negar qualquer espécie de validez ao documento apresentado como base da demanda, declarando-o forjado da primeira à última letra, jamais sua constituinte tomara dinheiro tomara dinheiro emprestado ao demandante, nada lhe devia, podendo prová-lo de forma limpa e irrefutável, pois sabendo ler e escrever, não tinha porque assinar a rogo. Uma verdadeira monstruosidade aquele documento, falso como Judas, senhor juiz.
Apresentara nova versão dos acontecimentos. Realmente a senhora Joana França necessitara de oito mil cruzeiros para atender a apuro do filho único, residente no Rio e, não dispondo do dinheiro, procurara o agiota Libório das Neves para lhe pedir emprestada a referida importância. O usurário prontificou-se a lhe fazer o empréstimo desde que ela lhe pagasse ao fim de seis meses, quinze mil cruzeiros pelos oito tomados, ou seja - pasme, meritíssimo! – juros de mais de cento e cinquenta por cento ao ano, ou doze por cento ao mês. Ante tais juros monstruosos, desistiu a senhora Joana da transacção e, sendo credora de certa quantia fornecida por seu marido quando vivo ao compadre e patrício António Salema, ou António Minhoto, dívida a vencer-se daí a meses, a ele recorreu, solicitando lhe adiantasse os oito mil cruzeiros de que carecia com urgência, sendo imediatamente atendida pelo compadre. A par do aperto da viúva e informado, como e por quem não se sabe, do facto de ter ela, quando do casamento com Manuel França, assinado a rogo os papéis necessários por não saber ler e escrever na ocasião, Libório Sabidório planejou o furto, com vistas a apoderar-se do sítio da demandada, como tem se apoderado, por meios igualmente ilícitos, de propriedades de outras infelizes vítimas de suas trapaças.
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