Episódio Nº 15
- O que foi que ele fez? – a assistência
não se continha mais. Só Zé Camarão sorria como se conhecesse uma história
ainda mais impressionante que a do homem de Ilhéus.
- De noite, Zé Estique veio… saltou do cavalo
e em vez de encontrar a mulher encontrou mas foi o gringo atrás de um pau com
um machado desta idade. Abriu a cabeça do negro meio a meio. Uma morte
desgraçada…
Uma mulher disse:
- Merecida… Bem feito…
Outra se benzeu
amedrontada. E o homem de Ilhéus se demorou contando histórias e mais histórias
de mortes e tiros da sua terra heróica. E quando ele foi embora, curado,
António Balduíno sentiu a tristeza de quem se separa de uma namorada.
É que nas conversas das
noites de lua no Morro do Capa Negro, o moleque António Balduíno ouvia e
aprendia. E antes de ter dez anos ele jurou a si mesmo que um dia havia de ser
cantado num A B C e as suas aventuras seriam relatadas e ouvidas com admiração
por outros homens, em outros morros.
A vida do morro do Capa
Negro era difícil e dura. Aqueles homens todos trabalhavam muito, alguns no
cais, carregando e descarregando navios, ou conduzindo malas de viajantes,
outros em fábricas distantes e em ofícios pobres: sapateiro, alfaiate,
barbeiro.
Negras vendiam arroz doce,
mungunzá, sarapatel, acarajá, nas ruas tortuosas da cidade, negras lavavam
roupa, negras eram cozinheiras em casas ricas de bairros chiques. Muitos dos
garotos trabalhavam também.
Eram engraxates, levavam
recados, vendiam jornais. Alguns iam para casas bonitas e eram crias de
famílias de dinheiro. Os mais se estendiam pelas ladeiras do morro em brigas,
brincadeiras. Esses eram os mais novinhos. Já sabiam do seu destino desde cedo:
cresceriam e iriam para o cais, onde ficavam curvos sob o peso dos sacos cheios
de cacau, ou ganhariam a vida nas fábricas enormes.
E não se revoltavam porque
desde há muitos anos vinha sendo assim: os meninos das ruas bonitas e
arborizadas iam ser médicos, advogados, engenheiros, comerciantes, homens
ricos. E eles iriam ser criados destes homens.
Para isto é que existia o
morro e os moradores dos morros. Coisa que o negrinho António Balduíno aprendeu
desde cedo no exemplo diário dos maiores. Como nas casas ricas tinha a tradição
do tio, pai ou avô, engenheiro célebre, discursador de sucesso, político sagaz,
no morro onde morava tanto negro, tanto mulato, havia a tradição da escravidão
ao senhor branco e rico.
E essa era a única
tradição. Porque a da liberdade nas florestas de África já a haviam esquecido e
raros a recordavam e esses raros eram exterminados ou perseguidos.
No morro só Jubiabá a
conservava, mas isto António Balduíno ainda não sabia. Raros eram os homens
livres do morro: Jubiabá, Zé Camarão. Mas ambos eram perseguidos: um por ser
macumbeiro, outro por malandragem.
António Balduíno aprendeu
muito nas histórias heróicas que contavam ao povo do morro e esqueceu a
tradição de servir.
Resolveu ser do número dos
livres, dos que depois teriam A B C e modinhas e serviriam de exemplo aos
homens negros, brancos e mulatos, que se escravizavam sem remédio.
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