À época em que tudo aconteceu, há mais de trinta anos... |
OS
VELHOS
MARINHEIROS
Episódio
Nº 3
Zé Canji
Eis
aí uma verdade que o farol do juiz não ilumina, foi-me necessário mergulhar no
poço para buscá-la. Aliás, para tudo contar, a inteira verdade, devo
acrescentar ter sido agradável, deleitoso mergulho, pois no fundo desse poço
estava o colchão de lã de barriguda do leito de Dondoca onde ela me conta —
depois que abandono, por volta das dez da noite, a prosa erudita do meritíssimo
e de sua volumosa consorte — divertidas intimidades do preclaro magistrado, infelizmente
impróprias para letra de fôrma.
Possuo,
como se comprova, certa experiência no assunto, não
é
a primeira vez que investigo a verdade. Sinto-me assim, sob a inspiração do
juiz — “é dever de todos nós procurar a verdade de cada facto” —, disposto a
desenrolar o novelo das aventuras do comandante, esclarecendo de vez e para
sempre questão tão discutida e complicada. Não se trata apenas das linhas
embaraçadas de um novelo: é bem mais difícil.
Pelo meio existem nós cegos, nós de
marinheiro, pontas soltas, pedaços cortados, linha de outra cor, coisas
acontecidas e coisas imaginadas e onde a verdade de tudo isso? Na época em que
tudo sucedeu, há mais de trinta anos passados, em 1929, as aventuras do
comandante e ele próprio eram o centro da vida de Periperi, dando lugar a
ardentes discussões, dividindo a população, provocando inimizades e rancores,
quase uma guerra santa.
De um lado os partidários do comandante, seus
admiradores incondicionais, de outro lado seus detractores, à frente o velho
Chico Pacheco, fiscal do consumo aposentado, ainda hoje memória recordada entre
sorrisos, língua de prata, ferina, homem irreverente e céptico.
A
tudo isso, porém, chegaremos com tempo e paciência, a
busca
da verdade requer não somente decisão e carácter mas também boa vontade e método.
Por ora ainda estou na borda do poço, procurando a melhor forma de descer ao
misterioso fundo.
E
já o velho Chico Pacheco sai de sua cova em remoto cemitério para me
atrapalhar, impor sua presença, perturbar-me. Sujeito qui zilento
e metediço, com a mania da evidência, amigo de mostrar-se, sua ambição era ser
o primeiro desse florido burgo suburbano, onde tudo é doce e manso, mesmo o
mar, mar de golfo onde jamais se elevam ondas furiosas, praia sem vagas e sem
correntezas, vida pacífica e lenta.
Meu
desejo, meu único desejo, acreditem!, é ser objectivo e
sereno.
Buscar a verdade em meio à polémica, desenterrá-la do passado, sem tomar
partido, arrancando das versões mais diferentes todos os véus da fantasia
capazes de encobrir, mesmo em parte, a nudez da verdade.
Se bem eu tenha tido
ocasião de constatar em carne própria, ou melhor na carne doirada de Dondoca,
nem sempre ser mais sedutora a completa nudez do que aquela que se mostra e se
esconde sob um lençol ou um trapo qualquer a ocultar um seio, um pedaço de
perna, a curva de uma anca. Mas a verdade, afinal!, não é para deitar com ela
numa cama que a buscamos com tanta teimosia e desespero por esse mundo afora.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home