Continuando na senda da obra de Jorge Amado, para mim o melhor contador de histórias e criador de inesquecíveis e típicas personagens da língua portuguesa, definitivamente morto Quincas Berro Dágua, essa figura invulgar do universo baiano, passemos aos Velhos Marinheiros ou Capitão de Longo Curso publicado em 1961.
Vasco Moscoso de Aragão desembarca em Periperi,
litoral baiano. Sua farda de marinheiro, seus mapas, o cachimbo e o telescópio
viram atracções na pequena cidade. Além dos instrumentos náuticos que fascinam
os moradores, a população local se deixa conqui star
também pelas histórias contadas pelo Capitão-de-Longo-Curso.
São narrativas que dão
notícia de países longínquos e portos distantes como Marselha, Nova York, Hong
Kong, Xangai, Calcutá. São fatos admiráveis e aventureiros como o enfrentamento
de tempestades e tubarões do mar Vermelho, naufrágios em ilhas remotas, amores
trágicos e pecaminosos.
Nesta narrativa contada
em tom de histórias de marinheiro, Jorge Amado apresenta um quadro de costumes
da sociedade baiana do começo do século XX. Ali, na pacata localidade do
litoral, convivem doutores ilustres, ricos comerciantes, senhoras de respeito,
aposentados, funcionários públicos e desocupados.
Dentro desse universo
comum, sobressai o comandante, com suas experiências extraordinárias. A vida no
mar lhe ensinou conhecimentos que extrapolam a navegação: afloram também suas
qualidades de homem honrado, de exímio jogador de póquer e de conqui stador romântico. De uma hora para outra,
Periperi encontrou um herói.
Mas o comandante não
tarda a despertar inveja e desconfiança. Convencido de que o Comandante é um
falsário, o fiscal aposentado Chico Pacheco vai investigar a vida atribulada de
Vasco Moscoso de Aragão.
Mas, vamos à história:
PRIMEIRO
EPISÓDIO
DA
CHEGADA DO COMANDANTE AO SUBÚRBIO DE PERIPERI, NA BAÍA, DO RELATO DE SUAS MAIS
FAMOSAS AVENTURAS NOS CINCO OCEANOS, EM MARES E PORTOS
LONGÍNQUOS, COM RUDES MARINHEIROS E MULHERES APAIXONADAS E DA INFLUÊNCIA DO
CRONÓGRAFO E DO TELESCÓPIO SOBRE A PACATA COMUNIDADE SUBURBANA E DE COMO O NARRADOR, COM CERTA EXPERIÊNCIA
ANTERIOR E AGRADÁVEL, DISPÕE-SE A RETIRAR A VERDADE DO FUNDO DO POÇO.
Episódio
Nº 1
Minha
intenção, minha única intenção, acreditem! é apenas restabelecer a verdade. A
verdade completa, de tal maneira que nenhuma dúvida persista em torno do
comandante Vasco
Moscoso
de Aragão e de suas extraordinárias aventuras.
“A
verdade está no fundo de um poço”, li certa vez, não me
lembro
mais se num livro ou num artigo de jornal. Em todo caso em letra de fôrma, e
como duvidar de afirmação impressa? Eu, pelo menos, não costumo discutir, muito
menos negar, a literatura e o jornalismo.
E, como se isso não bastasse, várias pessoas gradas
repetiram-me a frase, não deixando sequer margem para um erro de revisão a
retirar a verdade do poço, a situá-la em melhor abrigo: paço (“a verdade está
no paço real”) ou colo (“a verdade se esconde no colo das mulheres belas”),
pólo (“a verdade fugiu para o Pólo Norte”) ou povo (“a verdade está com o
povo”).
Frases,
todas elas, parece-me, menos grosseiras, mais elegantes, sem deixar essa
obscura sensação de abandono e frio inerente à palavra “poço”.
O
Meritíssimo Dr. Siqueira, juiz aposentado, respeitável e probo cidadão, de
lustrosa e erudita careca, explicou-me tratar-se de um lugar-comum, ou seja,
coisa tão clara e sabida a ponto de transformar-se num provérbio, num dito de
todo mundo.
Com
sua voz grave, de inapelável sentença, acrescentou curioso detalhe: não só a
verdade está no fundo de um poço, mas lá se encontra inteiramente nua, sem
nenhum véu a cobrir-lhe o corpo, sequer as partes vergonhosas. No fundo do poço
e nua.
O
dr. Alberto Siqueira é o cimo, o ponto culminante da cultura nesse subúrbio de
Periperi onde habitamos. É ele quem pronuncia o discurso do Dois de Julho na
pequena Praça e o de Sete de Setembro no grupo escolar, sem falar noutras
datas menores
e em brindes de aniversário e baptizado. Ao juiz devo muito do pouco que sei, a
essas conversas nocturnas no passeio de sua casa; devo-lhe respeito e gratidão.
Quando ele, com a voz solene e o gesto preciso,
esclarece-me uma dúvida, naquele momento tudo parece-me claro e fácil, nenhuma
objecção me assalta. Depois que o deixo, porém, e ponho-me a pensar no assunto,
vão-se a facilidade e a evidência, como, por exemplo, nesse caso da verdade.
Volta tudo a ser obscuro
e difícil, busco recordar as explicações do Meritíssimo e não consigo. Uma
trapalhada.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home