sexta-feira, julho 11, 2014

E os navios antes atracados ao cais, suspendidos ...
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado)

Episódio Nº 129











O frio da morte a pairar sobre a cidade veio das estepes da Sibéria nas asas brancas dos ventos do inverno glacial. Vinham de longe, traziam meia hora de atraso, mas quando chegaram foi o fim do mundo.

Os ventos do nordeste, o Terral e o Aracati, ocuparam-se do barco inglês e do navio do Lloyd, desamarrando-os de suas insuficientes amarras, batendo um contra o outro num rumor de cascos rotos.

O vento Aracati jogou o navio do Lloyd mar afora, sem mastros, cobertas, tombadilho. O Terral, nacionalista apaixonado, demorou-se a maltratar o cargueiro inglês, passando sua língua de faca afiada pela garganta dos loiros marinheiros, sua língua de mor e nordestina.

Terral naufragou o cargueiro perto do cais, num torvelinho, para que ali ficasse plantado como lembrança e advertência. Com os ventos, chegaram as chuvas vindas dali mesmo, de perto, da linha do equador onde dormiam nas florestas húmidas, trazendo todas as águas estagnadas da maleita, do tifo, da bexiga negra.

Vieram e transformaram a cidade em milhares de rios, riachos, ribeirões e córregos. O rio Amazonas começou a inchar, a comer terra com seus dentes ávidos de água, a fabricar ilhas e cadáveres. A pororoca tanto ampliou seu grito que ele mediu quilómetros de pavoroso som e foi ouvido nas costas da África, na cidade de Dakar e em perdidos povoados onde trémulos selvagens reconheceram o grito de guerra de Xangô.

O povo abandonava as casas, o trovão rugia, a luz eléctrica fora substituída pelos raios, e eram tantos os relâmpagos, sucedendo-se um após o outro, que tudo foi possível ver-se, o ruir das casas, carroças e automóveis levados pelas águas, gaiolas partindo rio adentro sem comando, indo encalhar nas repentinas ilhas recém-descobertas na terra arrancada das barrancas.

 Ia o povo pela rua em desespero, soltaram-se os ladrões e os assassinos, ajoelhavam-se homens e mulheres a rezar inventadas orações, um padre tentou organizar às pressas uma procissão, encheram-se as igrejas, era o tumulto do juízo final.

E os navios antes atracados ao cais, suspendidos nas mãos dos ventos de todos os quadrantes, arrancados de suas amarras, ficaram ao deus-dará da tempestade. E as chuvas a caírem, os pobres a chorar, os ricos a ranger os dentes.

Durou tudo apenas duas horas, e, se uma hora mais durasse, teria desaparecido do mapa a cidade de Belém com seus azulejos portugueses e sua graça antiga.

Desapareceria a cidade de Belém, engolida pelo dilúvio, levada pelo tufão, mas continuaria o Ita a seus cais amarrado, com todas aquelas amarras ordenadas pelo Comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso, único entre todos os velhos marinheiros capaz de prever a tempestade e de contra ela precaver o seu navio. Ali, firme no cais, imóvel e inamovível, com as suas amarras todas amarrado.

Tão inesperada e brusca como chegou, assim, de repente, se foi a tempestade. O ar ficou puro e leve, e a verdade então pairou no firmamento.

Passado o medo, os homens pobres começaram a contar os mortos e os desaparecidos, os homens ricos a contar os prejuízos. Os mortos eram poucos, os desaparecidos vários, montavam os prejuízos a milhões e milhões.

 Havia o perigo das febres na cidade agora sem esgotos. O cais da Port-of-Pará era um monte de destroços. Impávido, em meio à destruição, o Ita de proa altaneira, salvo por seu comandante.

Quando, já alta a manhã, finalmente chegaram o representante da Costeira, os oficiais de bordo e o povo, à pensão de dona Amparo, cuja descoberta tanto lhes custara, Vasco ainda dormia, inocente de tudo.

 O povo, que na véspera rira e chorara, gritava vivas na manhã de sol. Dona Amparo chamou à porta do quarto de Vasco, já refeita do terror da noite. Ele acordou, mas como escutasse os ecos do vozerio, pensou ser tão malvada aquela gente que ali vinha descobri-lo e insultá-lo.

Tanto bateram à porta, tanto chamaram por seu nome, que terminou por abrir e enfrentá-los: a barba por fazer, os pés vestidos de meias, as calças amassadas, a língua pastosa da cachaça. Viu o imediato em sua frente, comprimia-se o povo pelo corredor.

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