Largo do Seminário - Santarém |
HOJE É DOMINGO
(Na minha cidade de Santarém em 31/8/2014)
Morreu o Nunes.
Pelas contas de um outro colega meu, o Fernando,
presença assídua em todos os almoços de Curso na penúltima quarta-feira de cada
mês, já lá vão catorze daquele grupo de rapazes que no início do Ano Lectivo de
1959/60 se encontraram pela primeira vez no Largo do Príncipe Real, ao cimo do
Bairro Alto, em Lisboa, e foram colegas durante três anos no Instituto de
Ciências Sociais e Política Ultramarina.
A lei da vida, paulatinamente, vai fazendo a sua ceifa.
Os que restam, naturalmente, estão envelhecidos mas o Nunes não estava bem,
muito gordo e com dificuldades em respirar.
Quando me separei dele, no último almoço em que esteve
presente, tive o pressentimento que era a última vez que o via. Por isso, já cá
fora do restaurante, no momento dos abraços e apertos de mão, fiquei parado no
passeio acompanhando com um olhar de despedida a sua figura avantajada que se afastava
para sempre.
Depois disso,
tivemos a informação de que estava internado no Hospital e o resto foi o desfecho
esperado.
Instintivamente, ponho o relógio do tempo a andar para
trás e lá está o Nunes: jovem, moreno, bem parecido, irradiando confiança, no
átrio da sala de aulas, falando alto, chamando a si as atenções num grupo de
rapaziada da qual, quase metade, já partiu.
Partir, é uma maneira dizer, está na nossa linguagem,
faz parte da nossa cultura. Partir pressupõe um destino, uma morada, um local, mas para
onde?
Se o Nunes partiu, para onde foi? Alguém o sabe fora
de uma qualquer crença religiosa? Que pensaria o Nunes sobre isto? Teria tido
medo?
Mark Twain dizia:
- “Não tenho medo da morte. Estive morto durante
milhões de milhões de anos antes de nascer e não senti o mais pequeno incómodo
por isso”.
O Nunes fez o seu caminho, viveu a sua vida, teve essa
fantástica experiência: conheceu, aprendeu e, acima de tudo, jogou com as suas
emoções e sentimentos na intrincada teia das relações humanas que é a vida… Chegou ao fim,
sem dramas, ponto final. A vida dele prossegue na dos seus descendentes.
Disse Emily Dickinson, poetisa americana: “Por não
voltar jamais é que é tão doce a vida”.
O Nunes teve a sorte de morrer porque viveu, coube-lhe
essa rara oportunidade, veio do nada e de parte alguma e a ela regressa.
O meu colega Fernando que sofre de Parkinson, tem uma
lista mental secreta em que nos colocou a todos numa ordem cronológica para a data
de “partida”.
Parece maqui avélico
mas para mim não tem nada de mal, tal como a morte também não tem. Ele não
deseja a morte a nenhum de nós, é bom de ver, apenas procura ler sinais e a partir
deles coloca-nos numa “bicha”. Ele é um rapaz (80 anos) divertido, irónico, com sentido
de humor. Não foi difícil, por exemplo, perceber que o Nunes era o próximo
dessa lista.
A nós, que ainda cá ficámos, faço votos de muitos anos
de convivência… “ a vida é doce porque não volta mais”.
A propósito do falecimento do meu colega Nunes vou
transcrever, na íntegra, o epitáfio que o Prémio Nobel de 1973 pelos seus
estudos em Etiologia, Richard Dawkins destinou para o seu funeral:
- “Vamos morrer e por isso somos nós os bafejados pela
sorte. A maior parte das pessoas nunca vai morrer porque nunca vai chegar a
nascer. As pessoas potenciais que poderiam ter estado aqui
no meu lugar, mas que na verdade nunca verão a luz do dia, excedem em número os
grãos de areia do deserto do Sara. Seguramente que nesses fantasmas que nunca
vão chegar a nascer se incluem poetas maiores do que Keats e maiores cientistas
do que Newton. Sabemos isto porque o conjunto de pessoas potenciais permitidas
pelo nosso ADN é esmagadoramente superior ao conjunto de pessoas com existência
efectiva. Não obstante esta ínfima probabilidade, sou eu, somos nós que, na
nossa vulgaridade, aqui estamos.”
Para mim, que não sou filósofo nem Prémio Nobel, digo apenas de uma forma muito mais prosaica: "que seja o mais tarde possível e sem dor..."
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