Tocaia Grande não comporta tanta lordeza |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 22
Antes de tocar o animal, Natário
perguntou:
-Tá
precisada, Coroca?
- Não tou pedindo esmola. Antes morrer
de fome.
O Capitão riu, os olhos se fecharam,
peste de velha de cachaço
duro:
- Ainda lhe devo uns atrasados, se
lembra? Desde então.
- Isso possa ser.
Entregou-lhe
umas moedas, partiu em busca dos trabalhadores e por eles soube dos projectos
de Fadul. O mascate deixara com Bastião da Rosa algum dinheiro e ordens para
derrubar e preparar madeira bastante para a construção de casa de duas portas
na parte da frente e três cómodos nos fundos.
Palacete igual naquelas bandas somente
em Taquaras, junto dos trilhos da Estrada de Ferro e olhe lá!
Aliás, Lupiscínio, o carpina, viera de
Taquaras, mandado por seu Fadul para fazer balcão e prateleiras. Trabalho
grande e na correria. Bastião da Rosa opinou:
-
O turco maluqueceu, Capitão. Tocaia Grande não comporta
tanta lordeza.
Natário abanou a cabeça, discordando.
Maluco? Não achava não. Sabia de um saber sem dúvidas que,
mais cedo ou mais tarde, Tocaia Grande seria uma cidade perto da qual Taquaras
não passaria de desprezível tapera, um lazareto.
Palacete era o barraco de Jacinta se
comparado à choupana de palha onde Bernarda se abrigara: meia dúzia de palmas
mal juntadas, quatro tocos de pau enfiados no chão. No interior, um catre, uma
panela de barro sobre três pedras, mais nada.
Natário desmontou, percorreu com a vista
os arredores. A moça vinha chegando do rio, molhada da cabeça aos pés, na mão as
peças que fora lavar: uma calçola e uma anágua. O vestido de bulgariana,
ensopado em cima da pele, colava-se ao corpo escuro e o exibia; dos cabelos
soltos escorria água, pingos no cangote.
Ao reconhecer o visitante, suspendeu o
passo para logo partir correndo, os braços estendidos para ele. Nos olhos de
Natário corria uma menina de dois anos de idade que largava a poça de lama onde
brincava para pendurar-se nua e suja em seu pescoço.
Ao se acoitar na Fazenda da Atalaia, ele
vivera uma temporada longa em casa de Florêncio e de Ana, sua amásia.
Florêncio não trabalhava nas roças,
ocupado em serviços de maior vulto, cuidava de armas e jagunços.
Com que idade estaria Bernarda?,
perguntou-se quando a imagem da menina se incorporou na moça envolta em água e
sol.
Conhecera-a criancinha de peito,
pendurada nas ancas da mãe; de certa maneira Natário ajudara a criá-la. Na
saleta da casinhola de duas peças, Ana armara uma rede para o hóspede; no chão,
num caixote transformado em berço, dormia a criança.
Acordava chorando, no meio da noite, mas
raramente Ana despertava para lhe dar o peito. Morta de cansaço, mergulhada em
sono de chumbo no quarto vizinho, nem escutava o choramingar da filha.
Natário retirava a criança do caixote,
colocava-a na rede e com o balanço a fazia adormecer, pesando em cima de seu
peito.
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