Até os índios, nação mais perseguida, tem chão onde se deitar |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 45
O
Capitão desmontou a tempo de impedir que o turco concluísse o negócio da compra
do burro, mas dos sucessos da véspera soube apenas por ouvir dizer.
2
O que então se dizia e repetia na costa
e no sertão, todos sabem: cigano é outra nação, duvidosa. Não se confunde com a
raça grapiúna nem com nenhuma conhecida, não se mistura com sergipano ou turco,
português ou curiboca, com outra grei seja qual for.
Quem já compareceu a casamento de cigano
com gente do
país? Está por acontecer. Nação à parte,
casta de bruxos e gatunos, os ciganos vivem de enganos e embustes, de trapaças.
No lombo dos cavalos roubados, os homens
assemelham-se a fidalgos, condes e barões, duques e marqueses. Reclinadas em colchões
encardidos nas carroças onde vivem; vestidas de andrajos floreados, largas
saias de babado; recobertas de pulseiras e colares, as mulheres passariam por
princesas e rainhas não fossem a buena-dicha, a língua de trapo e os pés
descalços.
Levados pelas aparências há quem diga e até
escreva que os ciganos são o resto da corte real da Babilónia errante mundo
afora, cumprindo sina.
Fosse como fosse, convinha guardar
distância, usar de cautela no trato de negócios, esconder os bens mais
preciosos. Um povo sem chão, onde já se viu?
Ninguém pode confiar. Até os índios, nação
mais perseguida, têm chão onde pousar, se bem pouco já lhes restasse por
aquelas bandas nas quais, outrora, muito outrora, as tribos pataxós ocupavam
extensas áreas.
Senhores das matas e dos rios, os índios
pescavam e caçavam, dançavam e guerreavam. Foram mortos em sua grande maioria,
afinal não tinham qualquer utilidade para a lavoura do cacau. Arredios, os
sobreviventes buscavam manter-se em contados redutos mas o menor pretexto era
razão de sobra para liqui dá-los.
Ainda representavam algum perigo, diminuto porém.
Fazia tempo que se deixara de ouvir
notícia de povoação vítima do ataque de índios. Acontecera, sim, mas em data
remota, antes de haver Tocaia Grande.
O galpão erguido no
descampado atraía putas, alugados e mateiros. Os alugados vinham das roças que
começavam a ser plantadas nas clareiras abertas com o desbaste da floresta
pelos mateiros: primeiro o machado e o fogo, logo seguidos pela pá e a enxada.
Algumas raras quengas ali se fixavam, levantavam
uma palhoça; certamente motivos sérios as decidiram a viver em lugar tão de
somenos.
Perseguido chão de índios, misérrimo
chão de raparigas.
Chão de ciganos não existe: é o lombo
dos cavalos, o estrado das carroças, a sola dos pés. Ninguém pode confiar. Mas
quem não se encanta com um par de brincos cintilando ao sol, com uma jóia verdadeira
ou falsa, quem não deseja saber a ventura que lhe reserva o dia de amanhã?
3
Para que tudo fique claro ou se torne
ainda mais obscuro no relato da passagem dos ciganos por Tocaia Grande, faz-se necessária
uma referência mesmo breve ao passado de Guta, já então perfumada com o doce aroma de tabaco.
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