domingo, janeiro 25, 2015

Praça Sá da Bandeira - Largo do Seminário - Santarém
HOJE É DOMINGO





(Na minha cidade de Santarém em 25/1/15)













Visitei a aldeia dos meus avós, espaço “abençoado” das minhas férias dos já remotos tempos da minha juventude e, no entanto, tão presentes... e que diferente ela está!

Diferenças chocantes mas, mesmo assim, a “minha aldeia” será sempre a minha aldeia... a força das recordações mantêm-na incólume.

É enorme a lista de pessoas que já não existem mas que, no entanto, encontrei ao dobrar da curva, cada uma no seu passo, nas rotinas próprias da hora de cada dia. Lá estavam, exactamente como eram:

- Enxada às costas, tamancos nos pés, calças ligeiramente arregaçadas, o meu tio Firmino lá vai regar a horta, sempre composto, muito educado, bem apresentado, não fosse ele alfaiate:

- “O Sr. Lopes (era o nome do meu pai) “arruma” à esquerda ou à direita?”, perguntava-me ele, meio ajoelhado aos meus pés, metro esticado, a tirar as medidas para as calças.

Eu não teria, então, mais que catorze ou quinze anos e o meu tio Firmino foi a primeira pessoa, de certo, que me tratou por senhor, o que me deixava um pouco estranho. 
Eu sabia que era apenas um rapaz mas o meu tio Firmino era um perfeito cavalheiro, muito educado.

 - O Zé Palmeiro, expoente máximo do comércio lojista da aldeia, pescador invejoso, em cuja balança eu ia pesar os barbos, quando os apanhava, só para lhe meter raiva.

- A minha tia Joaquina, enorme corpanzil, ar de comandante, sempre de negro vestida porque não mais tirou o luto desde que em jovem ficou viúva do meu tio Manuel que morreu de cancro no cérebro quando eu era ainda tão novinho que não me recordo dele, e que me cumprimentava em tom superior mas amistoso.

Toda a minha aldeia é um espaço de vivos de pessoas que já não existem. Por isso, não é nas sepulturas do cemitério que eu as recordo, na aldeia do meu tempo ainda nem havia cemitério...

Quando as pessoas morriam iam a enterrar na outra aldeia, a três quilómetros de distância, que era sede da freguesia. Ali, só tínhamos o Cabo de Ordens que era o representante da autoridade.

De resto, confesso que não gosto dos cemitérios… é um sítio que me deprime, nunca ninguém viveu em cemitérios como é que os podemos recordar lá?

Recordá-los, é no espaço dos vivos: na fonte, nas ruas, nas tabernas, nos quintais, na loja da minha prima Clementina onde estavam instalados o Correio e Telefones públicos e em frente da qual esperávamos, todos os dias, pelo fim da tarde, a camioneta da carreira das 6 horas que parava precisamente em frente para largar pessoas e mercadorias que vinham despachadas antes de seguir viagem até ao Gavião, no fim do percurso.

Momento importante do dia, local de encontro das pessoas para verem quem chegava numa de curiosidade e coscuvilhice puras, m
as também para ver a Bia, a jovem mais bonita e letrada da aldeia, filha do Cabo de Ordens, que estudava Letras na Faculdade em Lisboa e não nos passava cartão… a nós, rapazinhos do liceu.

Também ela era presença assídua à camioneta das seis, sempre muito arranjada, os olhos bonitos, lábios pintados rigorosamente de encarnado e aquele ar altivo, superior, de quem se sentia a mais linda, com mais estudos e, melhor ainda, sem concorrência.

Desembarques e embarques feitos, correspondência e encomendas entregues na loja, e lá seguia a camioneta da carreira até ao seu destino final.

A Bia,  tomava, então, de novo, a estrada e regressava a casa com o mesmo passo e elegância com que hoje desfilam as jovens nas “passereles”mas sem os exageros parvos de agora... e eu ficava a vê-la, enfeitiçado, até que desaparecesse na curva, lá ao fundo.

Na verdade, nas minhas recordações de então não entra o cemitério. Relacionado com ele apenas os funerais, aquele desfile de pessoas vestidas de preto, com ares muito sérios e contristados que acompanhando a carreta e passavam na estrada, em frente do portão da casa da minha avó, a caminho do cemitério de Alvega.

Os defuntos eram sempre alguém muito velhinho que saía de ao pé da lareira onde estava quentinha para ir para debaixo da terra porque já não havia brasas que a conseguissem aquecer.

O meu irmão, também já falecido, deixou em mim um enorme buraco... tão diferentes que nós éramos! Ele tinha tanta vida, tanta energia que eu, o que recordo dele mais intensidade, são as almofadas a voarem pelo quarto naquelas brigas em que, embora mais velho, perdia sempre porque me desmanchava a rir de tanto encarniçamento. 
É verdade, espaço de vivos a não poder mais, com o meu irmão a correr atrás de mim desesperado porque me queria bater.

Quem tiver filhos de idades próximas deixem-nos brigar quando garotos, serão as melhores recordações quando chegar o “buraco” da ausência.

Vivemos em consequência de uma oportunidade rara, única e irrepetível e isso é, em si mesmo, um privilégio... maior ainda quando temos boas recordações da infância e juventude.

Viemos do mundo dos não vivos, inevitavelmente a ele regressaremos. A nossa vida foi aqui, experiência fantástica, tão fantástica que nos absorvemos com outras coisas, distraímo-nos e acabamos por passar ao lado do que, verdadeiramente, é belo na vida e esse foi um grande desperdício…o maior “pecado”.


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