sexta-feira, junho 12, 2015

As flores do temporão foram-se na enxurrada.
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 266



















A coisa não está pra brincadeira. Com igual pressa em voltar às roças ameaçadas, o capitão Natário da Fonseca chegou de prolongada ausência nas fazendas da Boa Vista e da Atalaia, portador de notícias tristes, recebidas de Itabuna.

O rio Cachoeira transbordara, inundando fazendas, destruindo roças, transformando-as em imenso lamaçal, expulsando os trabalhadores para o arraial de Ferradas.

Enormes prejuízos: as flores do temporão foram-se na enxurrada.

O coronel Boaventura Andrade, não menos preocupado, aproveitara-se para reenviar dona Ernestina às comodidades do palacete em Ilhéus, não antes no entanto que a santa senhora iluminasse a capela com dezenas de velas acendidas aos pés de São José, com a assistência da moça Sacramento, amor de menina, dedicada aos patrões, séria e diligente.

Dócil e cálida, acrescentava o Coronel a seus botões, aninhando-se nos braços acolhedores para suportar essas novas aflições que se acrescentavam a antigos e pesados amargores.

Se São José não se comovesse com as velas e as promessas, se o dilúvio persistisse nas cabeceiras do rio das Cobras, também ali, como sucedera no vale do rio Cachoeira, o temporão estaria perdido e a safra correria perigo.

Não foram apenas o coronel Robustiano e o capitão Natário, donos de terras e de roças, a tocar rebate. Mateiros e alugados, passantes no rumo da estação e das cidades, bandos de putas em retirada, repetiam a mesma desolada lengalenga: as águas subiam e ameaçavam o cacau.

Batido pela chuva, também Pedro Cigano veio se refugiar em Tocaia Grande:

- Caminhos não tem mais, é pura lama, as tropas já não passam. Vou ficando por aqui até Deus mandar uma estiada.

No balcão de seu próspero negócio, Fadul Abdala ouvia os relatos assustados, os maus presságios. Todos eles, os fazendeiros, os alugados, as raparigas e o tocador de harmônica preocupavam-se com a floração das roças, os incipientes bilros nascendo nos cacaueiros, com o temporão e a safra.

Escutando, constatava que ninguém se referia ao destino dos viventes. Calculavam o montante dos prejuízos causados pela enchente do rio Cachoeira, mas com a sorte dos retirantes sem pouso e sem comida, apinhados em Ferradas, ninguém se preocupava nem deles se compadecia.

Tendo perguntado o que estava sucedendo com aqueles infelizes, soube, mais ou menos vagamente, do surto de bexiga negra. Casos esparsos de bexiga não davam motivo para sustos, mas quando prosperava em epidemia, a morte fazia a feira, faturando alto.

Mais de dois decênios haviam transcorrido desde que Fadul
Abdala pisara o chão do cacau e se fizera grapiúna, primeiro de entranhas, depois de certidão.

Guardava no fundo do baú o envelopado em papel pardo, o documento do cartório de Itabuna, no qual se liam data e local do nascimento de criança de sexo masculino, cor branca e etecétera e tal, que na pia batismal recebera o nome de Fadul.

Vira a luz do dia na Fazenda Araruama, no termo de Macuco - brasileiro nato por obra e graça de Ubaldo Madureira, segundo escrivão e companheiro de regamboleio nas pensões de raparigas.

Homens e mulheres, meninos e meninas sobretudo, chegados do outro lado do mundo, renasciam brasileiros na pena garranchosa do amanuense. O tabelião, bacharel Márcio Costa do Amaral, punha carimbo e rubrica, garantias da verdade, embolsava boa parte da maquia.

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