(Domingos Amaral)
Episódio Nº 98
Decidida, olhou para a fogueira e exigiu-lhe:
- Quando
o fogo me chegar, tereis de me salvar. Prometei-me!
O almocreve tinha uma dívida de gratidão
antiga para com ela, e apesar de desconhecer o que a incomodava, concordou com
um aceno de cabeça.
Então, a mulher lançou a mão na direcção
do fogo, num gesto rápido, e uma enorme labareda cresceu. Depois atirou um pó
para a fogueira, que se apagou em instantes.
Mem teve a certeza de que ela era uma
bruxa embora parecesse aterrada com o futuro. Ouviu-a anunciar:
- A
partir de agora, terei de viver no escuro.
Sem nunca lhe dizer como se chamava, ou o
que ele deveria fazer para a ajudar, a mulher afastou-se, contornando a torre
tombada de Soure.
Mem não a voltou a ver até partir para
Coimbra.
Foi isto que ele disse, anos depois,
durante a minha investigação, quando me relatou o seu reencontro com a bruxa. E
eu acredito nele. Apesar de tudo quanto aconteceu, acredito nele.
Viseu, Domingo de Páscoa de 1126
O prior Teotónio, atrás do altar,
semicerrou os olhos. Estava num daqueles dias, como ele dizia, em que os dragões
negros o visitavam e o deixavam furioso com o mundo.
Ao contrário dele, que reduzia ao mínimo
as vestes, usando apenas uma alva branca e comprida, os nobres em Viseu, faziam
da Páscoa, uma ocasião para se pavonearem.
Pregava constantemente que Jesus não era
aquela explosão de colorida e brilhante de roupas e jóias, mas sim a pobreza e
o arrependimento, o despojo pelos haveres, o recato simples de uma oração, o
coração puro e vazio de instintos menores.
Mas o desejo de impressionar os seus
semelhantes toldava os fiéis, e apresentavam-se na Igreja luzidios, com seus
tecidos macios e os seus olhares invejosos, por descobrirem que alguém parecia
melhor do que eles, uns bancos à frente.
Com tantos mendigos nas ruas de Viseu à
fome...
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