(Domingos Amaral)
Episódio
Nº 154
Um frémito de terror
percorreu-lhe a espinha. Zulmira parecia ainda absorta no seu mundo de prazer,
mas Zaida parou as carícias.
Fátima?
Gritou alarmada.
Mem saltou da piscina
enquanto a mãe das raparigas protestava contra aquela inesperada interrupção.
Agarrando no saiote e na
camisa, correu pelo corredor, saindo para a rua ainda nu.
Cá fora reparou em três
coisas em simultâneo. À sua direita, Fátima estava sentada no chão, encostada à
parede pálida e a tremer. A dois passos dela via-se uma flecha quebrada. À sua
esquerda, já longe, um homem alto, com vestes de mendigo, corria
desenfreadamente, junto a uns casebres. E à sua frente, pelo caminho que levava
à cidade muralhada, chegavam três homens em passo rápido, comandados por
Ramiro, que vinha com o arco na mão.
Mem vestiu o saiote, enfiou
a camisa e ajoelhou. Fátima mal conseguia falar, mas apontava para os casebres.
Quando Ramiro, o Velho e o Rato chegaram, o primeiro ordenou aos outros que
perseguissem o fugitivo, e depois contou:
- Uma mendiga disse-nos que as mouras tinham
saído de casa, pela primeira vez em muitos dias, e que um pedinte as seguira.
Os monges guerreiros da
Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo haviam passado o verão em Coimbra,
recuperando os seus feridos e esperando que Gondomar ficasse melhor dos olhos.
Dias antes, haviam ouvido
falar num desconhecido que rondava o castelo, e tinham redobrado a vigilância.
Mem
virou-se para Fátima e afirmou:
- É o homem que matou o meu pai, lembro-me
dele.
Ramiro
interrogou a rapariga:
Abu
Zhakaria quer resgatar-vos, este homem quer matar-vos!
Quem
sois vós para tanto alarido?
Nesta altura saíram dos
banhos públicos Zulmira e Zaida, já vestidas e recompostas.
Mem olhou para Zulmira,
sentiu-se mal por ter deixado incompleto o que aquela mulher tanto desejava,
mas ela desviou o olhar e respondeu à pergunta de Ramiro:
- Sou a mulher de um antigo governador de
Córdova, nada mais do que isso. Não percebo porque me querem matar, ou às
minhas filhas.
Nem Mem nem Ramiro
acreditaram nela. Entretanto, o Rato e o Velho regressaram esbaforidos, e o
primeiro disse:
- O mendigo desapareceu.
Ramiro deu ordem de retorno
à cidade, prometendo uma busca mais intensa. Já a caminho, de sobrolho
carregado, perguntou a Mem:
- Não sabeis que as leis cristãs proíbem que
homens e mulheres tomem banho juntos?
- Estava a guardá-las respondeu Mem.
Ramiro estacou e a pequena
comitiva parou também. O Rato riu-se com a malícia e o Velho olhou para as
mouras com desdém.
Zulmira intuiu que eles eram
como os essénios, só gostavam uns dos outros.
- Nu? – perguntou Ramiro.
O almocreve emudeceu, não
queria pôr em risco o seu comércio.
Em sua defesa e fingindo-se
ofendida, Zulmira protestou.
- Ele estava na sauna, não na piscina
connosco! Por quem me tomais?
Sou viúva já por duas vezes,
deveis-me respeito! Não tenho idade para ser insultada por um rapazola.
Ramiro semicerrou os olhos e
em voz baixa retorqui u-lhe:
- Se não fosse o rapazola, a
esta hora estava morta!
Conciliadora, Zulmira
serenou de imediato o tom de voz.
- Tendes razão, e agradeço-vos por isso. Mas
não é necessário insinuar folguedos, ainda por cima com um almocreve.
Foi a vez de Mem se fingir
ofendido. Contudo Ramiro não acreditou neles e permaneceu tenso, mordendo o
lábio.
O Templário viria a
confessar-me mais tarde que achava Zulmira uma mentirosa. Aliás julgava todas
as mulheres mentirosas! A começar por Chamoa e a acabar naquelas mouras.
A sua estranha implicação
com mulheres não passara. Pelo contrário parecera agravar-se.
Naturalmente, as mouras
também não gostavam dele, e a embirração ainda mais se agravou quando Ramiro
convenceu o alcaide de Coimbra de que elas eram um perigo evidente para a
cidade, e que por isso deviam ser fortemente vigiadas.
Além das mouras, o principal
prejudicado desta situação foi Mem que se enamorara de Zulmira e de Zaida. Tal
como a paixão entre Afonso Henriques e Chamoa inflamou os maiores desastres no
Condado, também o que nasceu entre o almocreve e as mouras iria precipitar
muita desgraça.
Todas as paixões proibidas
têm a estranha e perturbadora beleza dos abismos.
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